Relato sério e pessoal sobre suicídio

Relato sério e pessoal sobre suicídio
Foto: Imagem meramente ilustrativa

Monday, 19 September 2022

Esse mês, nós precisamos falar disso. Por toda a vida, não podemos jamais evitar esse risco!

Havia um rapaz chamado Michael Emme. Ele tinha um grande talento mecânico e dedicou-o a restaurar um Mustang 68 amarelo. Seus amigos e familiares não foram capazes de perceber que ele tinha grande problemas psicoemocionais e, em 8 de setembro de 1994 ele tirou a própria vida. No funeral, seus pais distribuíram fitas amarelas em homenagem à cor que o filho tanto amava. Surgia aí o termo ‘Setembro Amarelo’ (ou ‘Yellow Ribbon’).

A verdade é que a importância de estarmos atentos aos sinais não-verbais das pessoas em nosso convívio é enorme.

Às vezes o problema tem uma razão biológica, como se convenciona a crer que foi o caso de Mike. Às vezes origina-se em um trauma, como Dolores O'Riordan, vocalista do Cranberries, vítima de abuso sexual. Mas em todos os casos a ajuda é fundamental.

Existe um enorme elefante colorido na sala e nós precisamos falar sobre ele. Ignorá-lo não o fará ir embora. Entendo que algoritmos limitam o alcance de palavras-chave com gatilhos para proteger as pessoas de gente mal-intencionada ou desastrada, mas fingir que o problema não existe, na MELHOR das hipóteses, não o resolverá. Na pior, o deixará mais forte.

Aqui vou quebrar um protocolo e, sabendo ser uma situação extremamente sensível, contarei a MINHA história com suicídio. Serão sete: seis sobre amigos e uma, minha. Por motivos óbvios, ocultarei nomes reais e resguardarei as localizações exatas.

A flor de cerejeira

Nos anos 90 morei brevemente no Japão. Fui acompanhar meu avô, que ia a trabalho. Aproveitei para aprimorar meus conhecimentos em artes marciais, especialmente Ninjutsu. Tinha acabado de entrar na adolescência e aquilo era um mundo totalmente novo.

Passei um bom tempo lá. Fiz amigos que trago comigo até hoje. Mas uma menina em especial eu jamais esqueci. Por causa de um coração partido uma linda jovem de apenas 15 anos tirou a própria vida em uma cerimônia chamada seppuku. Era 19 de abril de 1994.

Eu tinha acabado de ir embora e demorou quase um ano para saber o que tinha acontecido. Tinha apenas 14 anos quando soube e, honestamente, não sabia o que pensar. Na cultura dela esse tipo de situação é encarada com outros olhos. Aquilo me tocou para sempre, mas eu ainda não dimensionava a importância daquilo.

Anos depois, quando retornei a Itsukushima, pude ver a extensão dos danos: sua família havia se dilacerado e, mesmo em uma cultura onde isso é encarado com certa naturalidade, a perda de um ente amado causa danos indeléveis em todos.

O pedido de ajuda que ninguém ouviu

Mais tarde, enquanto eu morava e estudava em Boston, conheci uma moça muito querida. Inteligente e esforçada, era uma das melhoras alunas da turma que dividíamos. Cultivava uma esperança quase infantil na vida e tinha aquele brilho no olhar tão raro de encontrar. De todos os americanos que conheci, era uma das pessoas mais amáveis. Estudava para ser psicóloga e trabalhava como babysitter, como tantas e tantas garotas na América.

Em uma tarde, depois de um dia de falta, a garota que nunca perdia aula chegou arrasada: um dos jovens de quem ele cuidava havia tirado a própria vida. Ninguém nunca soube a razão.

Ela repetia que deveria ter percebido que os desenhos coloridos demais eram um indício. Mas, sinceramente, não tinha como ela saber. Fomos juntos ao velório. Soltaram bexigas e cantaram em coro ‘What’s Up’ e foi um evento tão bonito quanto triste. Minha colega já não tinha mais aquele brilho nos olhos. Acho que sua esperança fora abalada irremediavelmente.

Nos dias subseqüentes ela não voltou à aula. Soube que não voltou nunca mais. Dizem que se mudou para a casa da mãe no Maine, mas eu não sei se é verdade. O que sei é que ela abandonou sua carreira – e um futuro brilhante – e só Deus sabe como está hoje.

O lado mais abjeto da vida

De volta ao Brasil, agora em 2003, uma amiga da minha prima saía da faculdade em João Pessoa (PB) quando foi agarrada por um verme imundo e violentada num canto escuro perto do estacionamento do campus. Ela foi estuprada, espancada e ficou gravemente ferida.

Minha prima, Letícia, ficou compreensivelmente furiosa e quis caçar o desgraçado. Tratava-se de um morador de rua que dormia em uma obra perto da Praia do Jacarapé. Lê e eu chegamos a brigar por causa disso. E, por esse motivo, ela saiu do país para passar um tempo fora. Nenhum de nós poderia imaginar, mas a garota já tinha sido vítima desse tipo de covardia asquerosa antes e, não suportando, tirou a própria vida ainda no hospital.

Levei horas para criar coragem, telefonar e contar a Letícia o que tinha acontecido. A relação ficou um pouco abalada com aquilo. E quisera Deus que tivesse sido só isso.

A minha vez

Em 2006 a Letícia morreu. Foi uma fatalidade para a qual absolutamente ninguém estava pronto. Ali o meu mundo acabou. Pela primeira vez na vida eu havia perdido mais do que estava disposto a perder. Pela primeira vez na vida, simplesmente não sabia o que fazer.

Então minha vó, a condessa – o impávido esteio da família – tinha tentado suicídio. Aos 87 anos. Foi quando o médico do A4 (ala psiquiátrica do Hospital Santa Catarina) me disse, como se fosse tranqüilizar, que ela sempre fazia isso. Tentava se matar. Disse que, desde 1996, ela reiteradas vezes atentava contra si própria no afã de reencontrar meu avô no Paraíso. E a morte da Lê havia sido demais para ela também. A mente dela tinha colapsado.

Daquela vez ela havia chegado muito perto de conseguir morrer e estava em coma.

Eu havia perdido a pessoa que amei como se fosse filha e estava prestes a perder a mulher que amava como se fosse mãe. Foi, com certeza, a pior fase da minha vida. E, lá, eu cogitei botar um fim em tudo. E não por raiva, desespero ou dor. Não. Eu iria fazê-lo por estar vazio. Porque já não importa se o barco está em curso ou à deriva se ele não tem destino.

E, sem nenhuma companhia além dos meus próprios fantasmas, eu vacilei. Na hora mais sombria, sem ter a quem recorrer, pedi ajuda a uma amiga que já não era tão próxima. Lud. Disse a ela, com muita vergonha e me sentindo patético, que precisava de um abraço. E ela, com a bondade que apenas os anjos têm, me acolheu. Creio que ela não saiba disso, mas naquele dia – naquele ato que pode nada ter significado para ela – Lud salvou a minha vida.

Eternamente grato pela nova vida que minha amiga me deu, porém ainda sem motivos para seguir a rotina como conhecia, parti novamente. Mas, dessa vez, trouxe comigo as verdades que apenas o fundo do poço pode ensinar e, também, a mais importante de todas as lições que qualquer mortal (ou imortal) deve aprender: a humildade perante a própria insignificância.

Os brutos também amam

Muito tempo depois, já de volta a Blumenau, fui impactado por uma notícia terrível: um grande amigo atirou o próprio carro contra uma árvore.

Esse rapaz era um atleta de alto-rendimento. Uma verdadeira montanha de músculos capaz de erguer com certa facilidade pesos absurdos. Um lutador feroz capaz de esquecer que é humano durante o combate. Um estudante de Literatura com uma mente afiada. E um ser humano sensível, cortês e extremamente generoso. Uma pessoa única e maravilhosa.

Entretanto, uma série de acontecimentos muito adversos coincidentemente simultâneos o levaram ao mais puro desespero ao ponto de que, próximo a uma importante competição, ele quebrou todas as regras, dirigiu rumo ao litoral e colidiu a mais de 100 km/h em uma arvore.

Graças a Deus ele não morreu, mas dilacerou músculos, rompeu tendões e quebrou ossos de forma irrecuperável. Ele não apenas continuou com os problemas que o motivaram a querer terminar com tudo como também arruinou sua promissora carreira.

Hoje, tanto tempo depois, ele convive com o brutal e ocre peso do arrependimento.

Os frutos da guerra

No começo de 2017 soube, por amigos em comum, que um grande companheiro também havia sucumbido àquele vazio existencial – àquele câncer na alma – que nos tira de nós mesmos.

Um militar estrangeiro, ele havia participado de operações humanitárias no Oriente Médio e lá, como é normal acontecer, acabou vendo coisas que ninguém deveria ver. Pior... pelo que soube, acabou tendo que fazer coisas que passaram a perturbá-lo profundamente.

Nossos amigos disseram que ele passou o natal com a família, mas estava quieto. A esposa pediu que amigos viessem para tentar melhorar, mas não adiantou. Na noite do Réveillon ele aproveitou o ruído das festas para abafar o ruído e terminou com tudo.

Em sua dor, deixou a esposa viúva aos 26 anos e dois órfãos, de 6 e de 2 anos.

Morte em família

No mesmo ano o irmão mais velho da minha mãe decidiu se atirar da cobertura onde morava na beira-mar em João Pessoa. Coronel reformado do Exército, grande latifundiário, pós-doutor, ex-reitor universitário e político proeminente, ele simplesmente não aceitou a idade avançada.

Eu havia falado com ele um pouco antes. A família ficou inconsolável. Até hoje – cinco anos depois – ainda se negam a acreditar que tenha sido suicídio. Católicos fervorosos, entendem ser menos destrutivo crer em outra causa, mesmo não tendo outras teorias.

A verdade é que, de acordo com amigos próximos, sua percepção da realidade já estava sendo afetada pelos seus mais de 80 anos de vida e, em uma dessas distorções, lhe pareceu viável fazer algo que, se estivesse em pleno controle de suas faculdades mentais, jamais faria.

Conclusão

Se você é pai, mãe, irmão ou filho. Se você é sobrinho ou primo. Se você é amigo, amiga, namorado ou namorado. Ou se você é apenas um conhecido. Seja você quem for, por favor, preste atenção em quem você ama. Não abandone. Fique atento aos sinais. Não espere para chorar no túmulo, pelo amor de Deus. Você não quer isso para você.

Eu já fui o namorado, o colega, o conhecido, o amigo e o sobrinho de quem fez. Já fui neto de quem tentou fazer. E, por isso, imploro: preste atenção em quem você ama. Aquela pessoa que está diferente, que está introspectiva, ou que ri demais. Às vezes essa pessoa está te implorando por ajuda. Não fique de braços cruzados. Ajude. Ouça. Compreenda.

E cuidado com o meio em volta. Eu sei de escolas da região onde professores desqualificados ensinam alunos como se matar. Em breve falaremos mais sobre isso. Por ora, fica o alerta.

E se você está lendo esse artigo e leu até aqui (parabéns, você gosta de ler)... bem... se precisar conversar e quiser um amigo, me chame. Manda um direct, chama inbox. Posso demorar um pouco para responder, mas me diga que é sobre depressão e vamos conversar. Não sou psicólogo, não tenho qualificação para isso e não posso oferecer esse tipo de ajuda, mas com certeza posso ouvi-lo, podemos rir um pouco e, quem sabe, encontrar ajuda qualificada para você.

Há excelentes profissionais como a psicóloga Susana Werner ou o psiquiatra Gregory Haertel, bem como lugares incríveis como a Igreja Shalom e ações como atividades físicas com profissionais extremamente gabaritados como Jessica Bacci, Richard Maier e Fabio Goldacker, que além de excelente educador físico no SESC do Centro de Blumenau também é um ótimo  professor de karatê e participa de atividades sensacionais da Igreja Luterana de Pomerode.

O que não pode acontecer é você continuar se sentindo só. Você não está. Irmão. Moça. Não deixa essas coisas horríveis te distraírem do que você realmente é. Talvez você ache que está só e que ninguém se importa, mas isso não é verdade. Muita gente se importa. Não nos conhecemos ainda, mas eu me importo.

Amigos, parentes e conhecidos, por favor, não desistam e nem se distraiam. Amigo (ou amiga) em necessidade, por favor, não desiste. Tente sair desse vale de sombras. Se não conseguir, peça ajuda. Se tiver vergonha, chama anonimamente. Tem o CVV. Se quiser, com menos eficácia, me chama. Vamos tentar? Por favor.

Estamos juntos.


>> SOBRE O AUTOR

Ricardo Latorre

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