Bebida, direção e acidentes: estamos todos embriagados

Bebida, direção e acidentes: estamos todos embriagados
Foto: Reprodução

Tuesday, 07 February 2017

Eu já perdi a conta de quantos amigos me deixaram cedo demais porque algum motorista embriagado ao volante cortou o caminho deles.

Perdi familiares, conhecidos, colegas de trabalho, perdi muitos irmãos de causa que dedicaram a sua vida à segurança no trânsito e morreram justamente no campo de batalha, manchando o asfalto com o próprio sangue. Já tive amigos que foram enterrados de caixão fechado tamanha a violência da colisão. Desde a graduação em Segurança no Trânsito e a especialização em Planejamento e Gestão do Trânsito meu contato com acidentados de trânsito e familiares tem sido diário. Depois de um domingo sangrento em que um motorista embriagado provocou a colisão que tirou a vida de um homem de 45 anos e de outro que atropelou 3 pessoas, jogou-se no rio e ainda tem o corpo desaparecido, eis que me pergunto: como mudar essa realidade?

A imprensa tem sido parceira inconteste da luta por um trânsito humano e seguro, e noticia dia a após dia novos casos que pela recorrência mais parecem replay de notícias de ontem ou de hoje cedo. Mas, infelizmente, não são.  Todos os dias, em algum lugar da cidade, um motorista embriagado provoca colisões de todos os tipos e feridos, mas, a coisa toma proporção mesmo perante a população quando alguém morre, quando o acidente é grave, quando alguma vítima ou causador do acidente é conhecido.

Até quem dirige depois de beber, por alguns instantes, se questiona: “onde isso vai parar?”, ainda que não pare de dirigir embriagado. Será que o clichê “Se Beber não Dirija” faz esses condutores mudarem suas práticas? Intimida alguém? Então, o que pode mudar, intimidar, fazer as pessoas se sensibilizarem para a conscientização de que cada vez que eles bebem e dirigem são potenciais causadores de acidentes e de crimes de trânsito?

“Eu vou dizer prá vocês: eu bebi antes de dirigir, mas quem estava dirigindo não era eu, era um cara que eu paguei prá dirigir prá mim, mas que eu não lembro o nome ou quem é.” Pasmem, mas foi isso que alegou em vídeo o condutor que provocou a colisão que resultou na morte de uma pessoa neste final de semana.

Diante de tanta violência, de pessoas dirigindo embriagadas e provocando colisões de todas as gravidades, deixando feridos, sequelados permanentes e famílias órfãs; diante de tantas notícias diárias e da anodinia que se instalou entre a população, o problema passa a ser mais grave e mais complexo ainda. A anodinia é o sentimento de entorpecimento, de anestesia, de indiferença diante da dor do outro, do sofrimento do outro e das consequências e resultados das próprias ações. Bem isso que o Contran tenta evitar em suas resoluções, mas a questão não é só legal. Vai além!

Do que adiantam as multas mais salgadas e até as cominações penais para quem bebe e dirige se os condutores não se importam? E porque não se importam? Porque sabem que embora doa no bolso, acreditam que dificilmente serão flagrados. A menos que provoquem colisões de grande monta, feridos graves e mortes. Aí sim, eles choram, eles pedem perdão, eles negam, outros dissimulam ao nível hard do patético e do cinismo. 

Como vocês “acham” que se sente uma mãe que uma vez por mês vai até a Via Expressa colocar flores para que a morte da filha não caia no esquecimento e de lá vê o motorista que a matou bebendo no boteco próximo?

Como vocês imaginam que se sente a família de uma vítima de trânsito que vê o mesmo carro que tirou a vida de um ente querido estacionado em cima de uma calçada enquanto o condutor continua fazendo o que fez antes de assumir o volante e provocar como consequência da colisão a morte?

Nós, vítimas e familiares de acidentes de trânsito, somos punidos duas vezes: com a perda de quem nunca mais vai voltar; e com a indiferença de quem mata embriagado ao volante e continua reincidindo no beber e dirigir até que provoque outra morte.

Dinheiro da fiança deveria para as famílias

No país de presídios socados, sistema carcerário em colapso e que se solta preso para dar a vaga a mais presos, se fossem trancafiar atrás das grades quem mata no trânsito, certamente, ia faltar centros de detenção e presídios. Todo condutor que cai no art. 306, crime de trânsito por dirigir embriagado, vai para a delegacia, paga a fiança e sai com a CNH na mão para continuar dirigindo. Alguns, responderão os seus processos em liberdade e esses processos demorarão muito tempo para começarem a andar porque estão misturados com outras processos de outras Varas.

Quando julgados, dificilmente quem mata embriagado ao volante vai a júri popular e a “pena” é de causar pena mesmo: pagarão algumas cestas básicas durante um tempo e assim vidas vão sendo trocadas por arroz, feijão e óleo. Só que isso não mata a nossa sede de Justiça.

Em minha opinião, sendo a cidade de Blumenau uma das que mais registra acidentes de trânsito com embriagados ao volante, já passou da hora de se criar uma Vara específica para julgar os crimes de trânsito e dar celeridade aos processos.

Já passou da hora de destinarem o dinheiro da fiança para ajudar as vítimas e suas famílias, pois, para quem mata no trânsito, tudo; para as famílias nada!

Quem mata no trânsito, se não pode pagar advogado, o estado provê os dativos e o encaminhamento é imediato. Para as famílias, mesmo que a renda familiar passe alguns centavos do limite para o atendimento judiciário gratuito e as dificuldades sejam tamanhas pela morte de seu provedor, o jeito é fazer rifa, vaquinha, campanha para que não falte para o sustento da família órfã.  

Muitos familiares, sobretudo os idosos, têm a sua saúde física e psicológica comprometidas semanas ou meses após o crime de trânsito que rouba a vida de alguém. Alguns perecem nas intermináveis filas do atendimento público de saúde. As consultas nunca são regulares e assim filhos, esposas, maridos, pais, vão seguindo sem realizar o luto e sem amenizar a dor. A depressão se instala, toma conta e só aumenta as dificuldades enquanto quem mata no trânsito segue a vida alheio à tudo. 

Quem mata no trânsito deveria ir no velório e sepultamento daquele que ele tirou a vida. Deveria olhar nos olhos vazios e sem brilho das famílias, das mães, das esposas, dos filhos e bebês de colo com poucos dias de vida que vai crescer órfão de pai, de mãe. 

Com o tanto que se arrecada com multas na cidade já passou da hora de comprarem bateladas de bafômetros (ou etilômetros, como queiram) e se começar a fazer fiscalização dura, independente se avisam ou não pelas redes sociais, afinal, todo mundo sabe onde quem vai dirigir depois de beber está. A população de Blumenau é enorme e o que não faltam são bares, lanchonetes e pubs de onde sairão os que vão dirigir depois de beber. 

Proprietários desses estabelecimentos deveriam ser orientados a não vender bebida alcoólica para quem já está embriagado; a orientá-lo a não dirigir; a se prontificarem a ligar para alguém da família ou mesmo avisar a fiscalização de trânsito de que seu cliente saiu torto e dirigindo de seu estabelecimento, sem que isso soasse trairagem com um cliente que consome tanto. 

Estanque-se uma sangria administrativa daqui e dali e aumente-se o efetivo da guarda de trânsito para que as fiscalizações e blitz passem a intimidar quem se “acha” protegido pela falta de bafômetro, de efetivo e de operações da Lei Seca. Motoristas continuam dirigindo embriagados porque acreditam na impunidade, na falta de fiscalização suficiente, na falta de medidas preventivas, corretivas e socializadoras eficientes e eficazes.

Já passou da hora de se implantar políticas públicas sérias voltadas para o trânsito, colocar a segurança no trânsito como prioridade real e efetiva, buscando entre a população e entre os próprios condutores que assumem o volante embriagados a aproximação, orientação e intervenções necessárias. 

Que se passe a fazer valer a Lei 13.281, que acrescentou o artigo 312-A, relacionado aos 10 crimes de trânsito (302 a 312), para que nos casos de penas privativas de liberdade substituídas por penas privativas de direito, aquele que cometeu o crime de trânsito tenha contato com as vítimas, os politraumatizados nos hospitais e clínicas.

O ser humano, embora pareça cada vez mais desumano, ainda tem guardado em algum dobrinha de si algo que o sensibiliza diante do sofrimento alheio, mas que só é despertado quando é colocado frente a frente com o sofrimento, com a morte, com a dor. Seja a dor que ele sente quando outro condutor embriagado fere à ele ou à alguém da família dele, seja olhando nos olhos do que se fere ou morre em suas mãos, por suas mãos.

Sabemos que há quem provoque os acidentes e nunca mais vive sob o peso da culpa. Que há quem por um descuido, distração, imperícia ou imprudência, muda as suas práticas e atitudes no trânsito. Mas, que também há aqueles que se forem confrontados com as consequências de seus atos irresponsáveis no trânsito, quando expostos à dor e sofrimento que criaram, têm um choque de realidade. Distantes das famílias que mataram e das que provocaram a morte social eles vivem sob a égide de que “aquilo que os olhos não veem o coração não sente.” 

Vendo, sentindo de perto o mal que causaram, ajudando a trocar as fraldas de um adulto hospitalizado, ajudando a dar banho, olhando como se faz curativos em politraumatizados que eles feriram, sentindo o choro e a dor das vítimas e de seus familiares, quem sabe despertem, se tornem conscientes e, pelo menos, se forem beber, que não assumam o volante. Destruam as suas vidas sozinhos. Não condenem os inocentes à sequelas permanentes ou a pagarem com a própria vida pela sua irresponsabilidade no trânsito. 

Enquanto isso, em meio à tantas tragédias que poderiam ser evitadas, vamos vivendo o faz-de-conta sem final feliz: os gestores fazem de conta que se importam; fazem de conta que investem em segurança no trânsito; fazem de conta que as campanhas focadas em entregar panfletos evitam acidentes; a fiscalização faz de conta que fiscaliza; quem dirige embriagado faz de conta que é inocente; e as vítimas e suas famílias fazem de conta que acreditam na justiça e no fim da impunidade. E assim vamos ficando todos embriagados.


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Márcia Pontes

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