Gilda: o estudo do preconceito étnico entre pessoas da mesma etnia
Foto: LatuffWednesday, 18 January 2017
Estudo de caso de uma migrante branca, de origem européia, de uma região do Estado de Santa Catarina colonizada por brancos de origem européia para outra região de Santa Catarina também colonizada por brancos de origem européia, e os graves problemas de racismo/rejeição enfrentadas pela mesma ao longo de grande parte de sua vida.
1. INTRODUÇÃO
Enquanto pensava, aqui diante do computador, em como começar este texto, me veio à lembrança umas fotos que recebi, faz poucos anos, dos Açores. Creio que por dois ou três anos colaborei com um jornal de lá, o que me granjeou diversas amizades naquela terra européia perdida no meio do mar, e um dos meus leitores, um escritor já muito idoso e dado ao hábito de muito fotografar, me mandou lindas fotos do interior da ilha em que morava, São Miguel. Sabia, já naquela altura, que, partidas por sucessivas divisões feitas por heranças ao longo de mais de cinco séculos, as terras açorianas estavam divididas em propriedades cada vez mais minúsculas, e as fotos que recebi mostravam bem o que sabia, mas eram lindas aquelas fotos, com os pequenos lotes de terra cuidadosamente cultivados ou, no mais das vezes, transformados em pastos para um gordo gado que abastecia a Europa de leite, queijo e carne.
Além de lindas, as fotos me despertaram outra curiosidade: as cercas. Com tão minúsculos pedaços de terra, era impossível que logo no primeiro plano das fotos já não existissem as cercas, e lá estavam elas, de madeiras irregulares, cortadas, dispostas e pregadas irregularmente, muito diferentes das cercas às quais eu estava acostumada desde a minha infância.
Como eram as cercas da minha infância e as cercas que até hoje conheço e convivo no Vale do Itajaí/Brasil? Como a parte deste Vale aonde vivo é de colonização alemã, as cercas quase sempre são feitas de materiais muito uniformes (estaquetas, telas, tijolos, sejam quais os materiais que forem), numa uniformidade que levam a pensar no senso estético que, de maneira geral, agrada ao descendente dos moradores dos antigos estados alemães que aqui vivem. Não é possível que se generalize e se diga que tal gosto é um gosto exclusivo dos descendentes de alemães, pois hoje é muito grande a quantidade de etnias que convive no Vale do Itajaí, mas, no mais das vezes, as cercas das casas e de outras propriedades mantêm uma simetria que, ao longo da minha vida, fui cada vez mais associando à coisa cultural do alemão.[1]
Na minha adolescência tive a oportunidade de conviver largamente com as gentes de origem lusa que então viviam em Armação do Itapocoroy, município de Penha/SC, e quando, na década de 1990, recebi aquelas fotos dos Açores, lembrei-me imediatamente das cercas que então eram usadas pelos pescadores de Armação do Itapocoroy, tão irregulares e sem simetria em 1970 quanto as açorianas de 1970.[2]
As considerações acima são um tanto quanto antropológicas, mas foi um exemplo que me veio com muita força, quando comecei a pensar no estudo de caso que quero em fazer. É um exemplo que ilustra bem que dentro das etnias européias, consideradas “brancas” pelos projetos de formação do povo brasileiro que são criados após a segunda metade do século XIX, etnias que, a princípio, eram bem-vindas em pé de igualdade pelas elites brasileiras dos séculos XIX e XX, mas onde havia muitas diferenças culturais, e que mesmo entre elas criavam-se sérios problemas de aceitação ou não pelos indivíduos que as compunham, quando, de alguma maneira, se “mesclavam” ou “misturavam”. Considero que este preâmbulo é necessário para entrar no meu estudo de caso.
2. O ESTUDO DE CASO
2.1 O LUGAR DE ORIGEM
A pessoa “estudada”, no caso, é uma mulher que hoje (2004), está com 83 anos e é proveniente de uma região de colonização lusa próxima do litoral de Santa Catarina, Tijucas. Essa região tem uma colonização bastante antiga feita por portugueses e seus descendentes, tendo, no final do século XIX, tido também uma colonização italiana. A pessoa estudada prefere não se identificar e pediu para ser chamada de Gilda. Além de não admitir a sua identificação, Gilda negou-se a gravar uma entrevista de História Oral. Os depoimentos que obtivemos dela são produto de uma longa convivência, onde as histórias foram sendo contadas aos poucos.
Gilda nasceu em 1921 bastante afastada do centro nervoso do Brasil, isto é, o Rio de Janeiro, lugar onde estava o governo central do país, onde se decidiam as coisas da política, da economia, da cultura, onde, naquela altura de Primeira República, os então cientistas procuravam programar um futuro étnico para o Brasil, que tinha como eixo central um ideal de branqueamento. Giralda Seyferth[3] vai nos falar mais a respeito:
“O ideal de branqueamento ganhou o reforço das teorizações racistas intensificadas no final do século XIX e tornou-se tema de uma incipiente “ciência das raças” à brasileira, que deu respaldo acadêmico às especulações sobre o poder branqueador do processo de miscigenação herdado dos tempos coloniais. Assim, ao pessimismo de Nina Rodrigues, que imaginava o Brasil irremediavelmente atrasado em face da presença substantivas de “raças inferiores” e “mestiços inferiores”, opõe-se o otimismo de João B. de Lacerda, antropólogo do Museu Nacional, que visualizou a possibilidade do branqueamento fenotípico do brasileiro do futuro por meio de um processo seletivo de mistura racial num prazo de três gerações.(...)”.
Com poucas palavras Giralda Seyferth resume o pensamento que corria pelo Brasil, nesse tempo, sobre a futura formação do seu povo, o que estava fazendo com que, desde a década de 1820, se pensasse em trazer imigrantes para o nosso país, principalmente imigrantes “brancos”, de origem européia.
Gilda era uma brasileira branca, de origem européia. A princípio, sua vida não teria maiores problemas quanto à sua cor e/ou etnia, já que era muito clara, de cabelos castanhos e olhos verdes. Não era uma pessoa que tivesse que passar pelo cientificismo “branqueador” que existia no país. Apesar da sua origem lusa, crescera ela na casa do padrinho, agricultor, imigrante italiano, e muito absorvera da cultura italiana do padrinho e demais parentes dele, tanto costumes, quanto forma de religião, um pouco da língua, etc. O padrinho e os costumes absorvidos também eram de proveniência européia, de “gente branca”, e a mescla de sua origem lusa com a cultura italiana do padrinho não chegou a lhe causar maiores problemas. Ela freqüentou a escola possível na época, que eram três anos de ensino básico, e teve algumas regalias que não eram comuns a todos os brasileiros desse tempo onde a comunicação era incipiente, como a convivência com um padre holandês que era doutor em Teologia[4], e do qual, até hoje, lembra e relembra os ensinamentos, bem como a convivência com algumas lideranças locais, italianos de cultura européia moderna, diferente da maioria dos brasileiros daquela localidade, e com os quais estava em contato através do padrinho e da igreja.
Gilda cresceu no momento em que o Brasil começava um projeto de industrialização de base nacionalista, que se alastrara até Santa Catarina, formando os três primeiros núcleos industriais do Estado: Blumenau, Brusque e Joinville. O país, que até então fora rural, começava a necessitar de mão-de-obra especializada nos diversos ramos da indústria, e era necessário que houvesse excedentes nessa mão-de-obra, para garantir seu funcionamento sem interrupções. A falta de excedentes sempre colocaria as empresas industriais em risco de alguma greve, coisa que o Capitalismo não podia permitir, pois paralizações poderiam levar a falências ou prejuízos. Assim, na década de 1930, o Presidente Getúlio Vargas vai direcionar a legislação do país para que passe a causar entraves aos agricultores, forçando muitos deles a abandonar a agricultura e a mudar-se para as cidades industriais, atraídos pelo emprego que então era conseguido facilmente.[5] Gilda contou como eram tais dificuldades: até àquela data um agricultor podia matar um porco, vender sua carne, sua banha e demais derivados sem nenhum problema – a partir das novas leis, se um agricultor quisesse vender uma lata de banha, teria que ter um contador, organizar uma contabilidade, comprar caros selos que significavam os impostos. Tornava-se bastante difícil a vida de um agricultor. Assim, como tantos outros agricultores, ela acabou deixando a vida agrícola e mudando-se para a cidade de Blumenau, onde de imediato conseguiu emprego na antiga Empresa Industrial Garcia.
Blumenau era um outro mundo, no sentido de ter outra colonização, outros costumes, outra língua e ser industrializada, e ela afirma até hoje: “Deram-me emprego porque eu era bem crescida, bem saudável, bem branca.” Tinha 17 anos, então, e na Europa estava a rebentar a Segunda Guerra Mundial.
2.2 A MIGRAÇÃO
A cidade de Blumenau, na época, vivia sua nona década desde a fundação. Situada no Vale do Itajaí, Estado de Santa Catarina, fora fundada por um alemão chamado Hermann Bruno Otto Blumenau e colonizada, principalmente, por alemães, se considerarmos seu núcleo inicial. Pelo resto do Vale, diversas outras etnias tinham se estabelecido, enfatizando-se a presença de italianos que tinham chegado a partir de 1875. No espaço que hoje (2004) é o município de Blumenau, no entanto, a presença alemã era predominante. Voltando a Giralda Seyferth:[6]
“(...) As críticas sobre o modo de colonizar o Sul (...) não resultaram em práticas outras: as colônias continuaram recebendo imigrantes europeus e seus descendentes, e os brasileiros em geral continuaram excluídos.
Até a década de 1940, algumas questões configuraram-se mais diretamente vinculadas ao debate sobre a identidade nacional brasileira e ao problema da imigração, e serão brevemente analisadas neste trabalho:
(...)
c) A questão étnica suscitada pela emergência, ainda no final do período imperial, das etnicidades construídas a partir da experiência compartilhada do processo imigratório. Nesse contexto, a etnia paradigmática da exclusão é a alemã, considerada a mais irredutível ao caldeamento e à assimilação. (...).” [7]
Giralda Seyferth como que dá a “chave” para os acontecimentos que Gilda vai contar a seguir. Para situar melhor a época, é necessário que se olhe o governo de Getúlio Vargas não apenas como auxiliar valioso na implantação da industrialização brasileira, mas também no autor de um programa diferente do até então seguido para a formação de uma “raça” brasileira. Se até seu governo o que se discutia na academia e entre muitos cientistas era o “branqueamento” do povo, Vargas vai inverter o processo, desconsiderando o eurocentrismo então vigente para criar um outro personagem que deveria nortear a vida do Brasil de então adiante. O fato é analisado da seguinte forma por Seth Garfield[8]:
“Como parte de seu projeto multifacetado de construção de um Brasil novo – mais independente economicamente, mais integrado politicamente e socialmente mais unificado, Vargas voltou-se para o valor simbólico dos aborígenes. (...) Os índios eram defendidos por Vargas por conterem as verdadeiras raízes da brasilidade.
(...)
Ao difamar o europeu e consagrar o indígena, os ideólogos e intelectuais da Era Vargas inverteram ou subverteram a concepção eurocêntrica da história da cultura e do destino nacional, vigente na elite brasileira. A essência da brasilidade havia sido redefinida por membros da elite e daintelligentsia: ela não atravessou mais o Atlântico, mas brotou do solo da nação, da sua fauna, flora e dos seus primeiros habitantes.”
Se Vargas tinha um novo projeto de Brasil e começava a aplicá-lo a nível nacional, tal realidade não chegava a interferir com o que acontecia na antiga colônia Blumenau, onde os alemães e seus descendentes continuavam sendo a etnia “mais irredutível ao caldeamento e à assimilação”.[9] Há que se lembrar da nota de rodapé nº 1, onde convencionou-se que a palavra “alemão” designaria tanto os habitantes dos antigos estados que iriam formar a Alemanha em 1871 quanto seus descendentes. Um novo fenômeno vai acontecer em 1890, quando se cria, a partir da Alemanha, a doutrina do pan-germanismo, e o conseqüente “deutchstum”, o que poderíamos traduzir como “germanismo”, mas que não será discutido neste espaço. Continuar-se-á a usar a palavra “alemão” quando necessário se fizer referir-se aos habitantes de língua alemã que viviam em Blumenau.
Gilda, brasileira branca de origem européia, vê-se então entre outra gente branca, de origem européia, que não está interessada no projeto nacionalista de Vargas, e que vê em Gilda um ser inferior, uma “cabocla”. A definição de caboclo é a de mestiço entre o branco e o índio, mas na cidade de Blumenau tal palavra tem outra conotação: para o “alemão”, “caboclo” é quem não é alemão nem de “origem”[10] alemã. Nessa altura, é muito grande o número de filhos, netos e outros descendentes de alemães imigrantes já nascidos no Brasil, mas a comunidade continua a se sentir “alemã”, mesmo já sendo brasileira de diversas gerações. Ela “cabocliza” as etnias que não falam alemão, principalmente as pessoas de etnia lusa, e que ainda por cima são católicas, já que é muito grande o número de protestantes luteranos que vivem na cidade de Blumenau de então e de agora. É como cabocla que Gilda é recebida na nova comunidade, pois detém três graves defeitos: tem sobrenome luso, á católica e não fala a língua alemã. As discriminações que vai sofrer por conta desse acaboclamento resultante da migração pela qual passa são muito grandes em quase todos os ambientes: no emprego, conseguido por ser “bem branca”, na família do rapaz com quem vai namorar a seguir, por ser etnicamente diferente, etc. São quase infinitas as queixas e considerações que Gilda tem sobre as segregações e discriminações que vai sofrer logo na sua chegada e ao longo de algumas décadas adiante. Embora Jeffrey Lesser vá dizer que “A ‘brancura’ continuou como um requisito importante para a inclusão na ‘raça’ brasileira, mas o que significava ser ‘branco’ mudou de forma marcante entre 1850 e 1950” [11], o grupo étnico alemão, ao considerar “caboclos” aos demais grupos étnicos, reserva para si tal “brancura”. Giralda Seyfert de novo vai tomar da palavra[12]:
“Os grupos imigrados construíram suas identidades étnicas (...) baseados na percepção das diferenças em relação à sociedade brasileira. (...) A retórica etnocêntrica que acompanhou a elaboração das identidades estabeleceu o caboclo como o outro, o oposto ao imigrante europeu. – categoria usada como sinônimo de brasileiro. Esse sistema categórico construído por oposição envolve, principalmente, critérios raciais e formulações subjetivas acerca do caráter e da mentalidade – em que o caboclo aparece como indivíduo racialmente inferior, e o epípeto de “preguiçoso” é o menos carregado de intenções pejorativas. (...) Na representação do pioneiro, a categoria colono (trazida do jargão oficial) identifica os imigrantes europeus e seus descendentes, e a colonização é definida como um processo civilizatório instaurado na selva brasileira. Nela, certamente o caboclo brasileiro ocupa a posição de bárbaro diante de civilizados!”
A intenção deste texto é mostrar a história da personagem Gilda como migrante, e assim ficará de fora toda uma discussão que poderia ser feita aqui sobre etnicidade, pertencimento, etc., que caracterizaria ainda melhor a sociedade “alemã”, ou “de colonos”, como poderemos chamá-la daqui para a frente, em contraposição à cultura, língua, religião e demais costumes da cultura de onde Gilda provinha.
Taxada antecipadamente como “preguiçosa” e outros adjetivos ainda mais contundentes, Gilda adentra ao novo ambiente disposta a se fazer respeitar nele. Segundo ela, aprendeu que “quem fica quieto acaba vencendo”, e muito deve ter se calado para chegar hoje à posição de respeito que ocupa na mesma sociedade para onde migrou faz 70 anos, e que por antecipação já a excluía. Ela conta das grandes barreiras enfrentadas quando começou um namoro com rapaz “colono”, “de origem”, “alemão” (quando, na realidade, de alemão ele só tinha um avô). Ela não era “de origem”, como se a única origem válida para uma pessoa fosse a alemã. Origem lusa não era “origem”, bem como muitas outras. Assim, sem “origem”, Gilda vai enfrentado passo a passo cada rejeição que sofre na família do noivo (bem como nos outros ambientes aonde vive, como no trabalho, por exemplo), e acaba se casando com o mesmo. “Mantinha a casa sempre impecavelmente limpa e arrumada, para que não pudessem falar” – lembra ela. “Jamais deixava qualquer líquido escorrer pela beirada do fogão (os antigos fogões de tijolos), para que nunca alguém pudesse chegar e dizer que o meu marido se casara com uma cabocla que não era limpa.” É possível se imaginar a constante tensão em que vivia Gilda, continuamente sob pressão, constantemente tendo de provar ser ela tão boa ou melhor que os “alemães”, para, de alguma forma, diminuir a rejeição onde vivia. Ao mesmo tempo, tem um bom relacionamento com o marido “de origem”.
“O meu marido se casou comigo para valer, para sempre. Era alguém que gostava realmente de mim.” Portanto, a exclusão no público não vai interferir no privado, e ela conta com orgulho como, aos poucos, a partir do casamento, o jovem marido vai passando a gostar sempre mais da sua comida do que da comida da mãe dele. É como uma redenção – é a aceitação dos seus costumes. Até hoje ela critica muito certos costumes alemães: “O feijão de vara, a cenoura, etc., eu refogava numa panela e depois os ensopava sem jogar o caldo do próprio legume fora. Os alemães cozinhavam até ficar mole, jogavam toda a água fora e depois comiam o legume com vinagre. Jogavam fora a melhor parte da comida, a parte onde estavam as vitaminas, as coisas boas. Eu era cabocla, mas sabia melhor que eles o que era bom para a saúde.”
Sua redenção parece ter sido no dia em que um cunhado esteve a visitá-los, e depois comentou com seu marido: “A tua mulher é limpa mesmo! Não é como a mulher de Fulano (uma “alemã”) que deixa o café escorrendo pela beirada do fogão” – referindo-se à forma como ela mantinha o fogão e o resto da casa. Quase setenta anos depois, ela lembra muito bem daquele momento.
Quando vieram as crianças, seu cuidado redobrou. Tinham que estar sempre muito limpas, muito bem cuidadas, de um jeito que não permitisse que qualquer parente “alemão” pudesse fazer qualquer crítica. A tensão continuava , e ela sabe como, nas festas da família, suas cunhadas mostravam suas crianças para os estranhos e diziam: “Veja que bonitinha! Tadinha!” – e ela sabia que o “tadinha” era um adjetivo que significava que se tratava de uma criança mestiça, portanto, de qualidade inferior, filha de uma cabocla.
Naquelas primeiras décadas de tensão ela adaptou-se o mais que pode ao grupo no qual penetrara, tentando vencer suas diferenças de migrante. As cercas de estaquetes da sua casa eram tão simétricas e bem feitas quanto as de qualquer outro “alemão”; seu jardim era composto por retilíneos canteiros de rosas e violetas, e ela plantava gérberas em filas tão “prussianas” quanto qualquer das suas cunhadas. Além da casa, do jardim e dos filhos, ela muito trabalhou para ajudar o marido, pequeno comerciante, e assim, aos poucos, acabou conquistando um respeito que não tinha no começo, diante da família do marido e da sociedade em geral. Deve ter demorado, no mínimo, umas três décadas. Ela viu todo o desenrolar da Segunda Guerra Mundial em Blumenau, viu o processo de nacionalização que o governo Vargas promoveu, viu a gente da qual agora passara a fazer parte ser obrigada a falar a sua língua (ela conta que inúmeras vezes foi censurada por falar palavras do português que os “alemães”, no seu parco entendimento de tal língua, lhe censuravam pelo uso), viu as muitas outras migrações para a cidade de Blumenau. O “colono” foi, muito lentamente, absorvendo as realidades brasileiras, sendo que, nas palavras dela, “Alguns não têm jeito. Continuam sendo “de origem” e não se interessam por mais nada.”
Gilda criou bem sua família, cuidou do seu marido até seu falecimento prematuro, aos 62anos, portanto, há mais de vinte anos, teve tempo, mais de uma vez, já na sua viuvez, de ir cuidar de cunhadas que estavam doentes, em cidades distantes, conquistando cada vez maior respeito na sociedade e na família. Ela está viva o tempo suficiente para ter visto diversas coisas: sua cultura primeira, sua migração e uma cultura nova, à qual se adaptou com firmeza, o processo de nacionalização, o recriar da cultura do pessoal “de origem”, quando Blumenau criou a Oktoberfest, em 1984. Com a criação da Oktoberfest, ela demonstrou muita emoção. Era uma festa que a fazia lembrar de tempos antigos, quando, mesmo cabocla a ser humilhada a todo instante, viveu os tempos coloridos da juventude, enfrentou uma família ferrenhamente “de origem”, casou-se.
2.3 HOJE
Hoje Gilda vive um refluxo da sua cultura original. Ela é economicamente independente; seus filhos tiveram sucesso econômico e profissional na vida e ela recebe considerações de pessoas e grupos estranhos por isto, além de ser considerada por sua própria personalidade que enfrentou as adversidades e lutou contra costumes estabelecidos, saindo vencedora de uma luta que durou quase toda a sua vida. É bastante evidente o quanto lhe importa o fato de ter conquistado o respeito da família do marido, que hoje lhe tem grande consideração, como é evidente a surpresa que tem quando vê autores portugueses famosos internacionalmente, como Eça de Queiroz ou o prêmio Nobel de Literatura José Saramago, usando palavras que lhe foram censuradas na juventude.
Gilda, hoje, não deve explicações de sua vida a ninguém, e então a sua cultura original pode refluir sem críticas, e basta-se chegar ao portão do jardim da sua casa para entender isto. Acabaram-se as gérberas em filas prussianas; acabaram-se as fileiras retilíneas de roseiras. Seu jardim é, hoje, exatamente um jardim português, com todas as plantas e flores misturadas, bem como se pode ver na maioria dos jardins daquele país ibérico. Sua casa é cercada por um muro retilíneo como os muros “alemães” que foram falados na introdução deste texto, mas nada a impediria de fazer novas cercas como as da sua cultura lusa. Como migrante, algumas coisas ela acabou absorvendo da nova cultura, e como podemos ver num texto traduzido por Eunice Nodari[13]: “Grupos étnicos em cenários modernos estão constantemente se recriando e a etnicidade está sendo reinventada continuamente como resposta às realidades inconstantes tanto dentro do grupo como na sociedade anfitriã.”
Assim, com a liberdade do respeito adquirido e da idade, Gilda hoje pode viver a sua real personalidade, que vamos tentar explicar qual seja: já não é mais a personalidade da mocinha “cabocla” que um dia avançou para dentro do terreno “inimigo”, nem a mulher “de origem” com a qual quis se parecer quando vivia sua luta pela conquista de respeito e de um lugar ao sol. Hoje ela pode se dar ao luxo de ter seu jardim luso e seu muro mais ou menos prussiano sem ter que explicar nada a ninguém.
CONCLUSÃO
No estudo de caso efetuado ficou bastante claro como uma cultura pode ser “absorvida” por outra, pelo menos durante algum tempo. São muitíssimos os casos de migrações pelo mundo, e há de haver tantos outros casos de rejeição/absorção/interpenetração/ e/ou outras possibilidades a cada vez que uma migração acontece. Sentimentos nos quais sequer se pensa, às vezes estão embutidos nos machucados e dores que as mudanças acabam provocando em grande parte dos migrantes, sentimentos que os ajudam a sobreviver no novo ambiente, onde, como no caso estudado, até a língua original era negada, primeiro num todo, depois, em parte. Também se pode observar que o migrante, de alguma forma, conserva sua cultura original, e, havendo a possibilidade, ela ressurge, mesmo que já ressurja mesclada com coisas da cultura adotiva. Novas sociedades se formam a partir do encontro de etnias diferentes, como é o caso de Blumenau, que já não é “colona” e nem “cabocla”, mas uma nova cidade onde ainda continuam se mesclando as muitas etnias que para ela migraram e continuam migrando.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONZEN; Kathleen Nehls; GERBER, David A.; MORAWSKA, Eva; POZZETTA, George E.; VECOLI, Rudolph J. Fórum. The Invention of Ethnicity: A perspective from the U.S.A. In: Journal of American History. Fall, 1992. Traduzido por Eunice Sueli Nodari
GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na Era Vargas. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 39, 2000, p.13-36
LESSER, Jeffrey. O Hífen Oculto. In: A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001, p. 17-35
SEYFERTT, Giralda. Identidade Nacional, diferenças regionais, integração étnica e a questão imigratória no Brasil. In: ZARUR, George de Cerqueira Leite. Região e Nação na Aqmérica Latina. Brasília: Editora da UnB: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 81-109
[1] Deixo convencionado que sempre que eu usar a palavra “alemão” ou “descendente de alemão”, estarei me referindo aos descendentes dos moradores dos antigos Estados que, em 1871, vão dar origem ao país que hoje conhecemos como Alemanha. Quando quiser me referir a algum alemão nato, darei a devida informação. (Nota da autora)
[2] Como quase tudo o mais que recebe a influência deste mundo quase globalizado, as próprias cercas irregulares de Armação do Itapocoroy praticamente desapareceram. (Nota da autora)
[3] SEYFERTH, Giralda. Identidade nacional, diferenças regionais, integração étnica e a questão imigratória no Brasil. In: Região e nação na América Latina. Org. ZARUR, George Cerqueira Leite. Brasília: UnB, s.d.
[4] Padre Jacob Hudleston Slatter (Nota da autora)
[5] A legislação que vai dificultar a vida do agricultor consiste numa série de leis complementares principalmente à Constituição de 1934, além de outros atos, como Decretos. O Professor Mestre em Educação e Geógrafo, Aldo Moretto Sobrinho, realizou a pesquisa sobre tal legislação, tendo usado como fonte, principalmente, boletins que eram emitidos para os Contabilistas da época. Esta informação foi confirmada com o referido professor, verbalmente, em julho de 2004.
[6] SEYFERTH, Giralda. Op.cit. p. 88
[7] Grifo da autora.
[8] GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na era Vargas. In: Brasil, Brasis. Revista Brasileira de História nº 39, v. 20. São Paulo: ANPUH, 2000.
[9] SEYFERTH, Giralda. Op. Cit., p. 88
[10] Até hoje, ano de 2004, Gilda usa a expressão “de origem” para designar os alemães e seus descendentes, como se ser “de origem” significasse ser alguém “melhor” na escala social. (Nota da autora)
[11] LESSER, Jeffrey. O hífen oculto. In: A negociação da identidade nacional: imigrantes, minoria e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. p. 21
[12] SEYFERTH, Giralda, op. Cit. P. 97-98
[13] CONZEN, Kathleen Nehls et alii. The invencion of Ethnkcity: A perspective from U.S.A. In: Journal of American History, Fall 1992. Traduzido por Eunice Nodari.