Acidente de trânsito: estado das vítimas primeiro; quem paga o quê, depois
Foto: ReproduçãoTuesday, 07 March 2017
Neste sábado um acidente de trânsito quase terminou em vias de fato. Enquanto uma das vítimas, grávida, reclamava de dores devido à batida da cabeça, ela ainda foi provocada durante o bate-boca generalizado.
Por pouco um acidente de trânsito na tarde do último sábado, dia 4 de março, em frente ao Parque Ramiro Ruediger, na entrada pela Rua Alberto Stein, em Blumenau, não termina em vias de fato. O curioso é que os envolvidos, alguns garotos que estavam em um dos veículos, e um casal com 3 filhos (a mulher é gestante) estavam tentando se manter calmos, mas a chegada de familiares de uma das partes causou tumulto. Um senhor parou o carro nervoso e já saiu gritando e apontando dedos ao mesmo tempo em que gritava dirigindo o olhar para um dos condutores: “Tu veio de onde? Daqui? Aqui a preferência é tua; ele veio de lá e vai ter que pagar o conserto”, sentenciava. A gestante estava no banco do carona e na colisão que deixou a porta amassada e o eixo de uma das rodas quebrado, reclamava de dores. Alguém trouxe uma barra de gelo enquanto outro tentava chamar uma ambulância. Até que uma hora os ânimos se alteraram e era bate-boca de todos os lados. Uma criança que aparentava uns 3 anos ficou assustada e começou a chorar. O pequeno enxame de umas 30 pessoas chamava à atenção quem passava no local.
Duas coisas ficaram bem evidentes: a noção equivocada de que exclusivamente a preferência culpa ou inocenta alguém e a total indiferença em relação à uma vítima de acidente de trânsito grávida e com um galo enorme na cabeça devido ao efeito chicote. Todos estavam usando o cinto de segurança e as crianças na cadeirinha. O maiorzinho que aparentava uns 7 anos tinha um machucadinho na unha.
Naquele momento eu encerrava mais um encontro do Grupo de Apoio a Pessoas com Medo de Dirigir no Parque Ramiro Ruediger e caminhava com uma aluna para o estacionamento próximo ao local do acidente. Bem nesse dia o nosso diálogo também foi sobre condutas preventivas no trânsito e preferência no trânsito, tomando como exemplo para análises e explicações a rotatória da Vila Germânica. Minutos antes as alunas flagraram uma quase colisão (por um triz) para ilustrar a aula em via pública.
Me aproximei do grupo para verificar se estava tudo bem com a gestante, os três filhos e o marido, o condutor do veículo que se envolveu na colisão quando tentava convergir ao lado do canteiro central da rua Alberto Stein (em Blumenau) para um lote lindeiro do outro lado da via. O outro veículo onde estavam os rapazes ficou com a frente e o capô amassados. Na parte de trás um rastro de frenagem que foi observado pelos agentes da guarda de trânsito junto com os demais detalhes.
A preocupação com o estado das vítimas deveria estar em primeiro lugar
Em uma situação dessas em que há uma colisão os ânimos ficam exaltados, as pessoas nervosas e a primeira pergunta que se deveria fazer é: “estão todos bem? Tem alguém machucado? Precisa chamar a ambulância?”. De fato, a preocupação central não deveria ser com a lataria dos carros, de quem é a preferência, sobre quem é o culpado e quem vai pagar o quê. Se nem os agentes de trânsito sentenciam sobre culpa ou inocência em acidentes de trânsito, quem dirá os familiares nervosos e curiosos que não presenciaram a cena.
O fato é que no local estava uma grávida que tinha batido a cabeça na colisão, com um galo enorme, se queixando de dores e uma criança com expressão de pavor diante de tantos gritos, acusações e dedos apontando para todas as direções enquanto se discutiam quem era culpado ou inocente. Pedir calma parece que não estava adiantando e os ânimos novamente ficaram exaltados mesmo depois da chegada dos agentes da GMT. Quando pensávamos que estava tudo bem, o bate-boca recomeçava com dedos em riste e acusações.
Isso vale para todo e qualquer acidente de trânsito: ora, o acidente já foi provocado, os veículos já estão danificados e discutir num momento desses só piora as coisas, não resolve nada! Sentenciar sobre quem é culpado ou inocente somente com base em preferencial na via não é suficiente e é tarefa exclusiva do magistrado caso as partes não se entendam e reclamem os seus direitos na esfera judicial.
Quando alguém pede às pessoas exaltadas um pouco de calma e que se respeite uma gestante ferida na colisão, gritar aos quatro cantos que gravidez não é doença não dá a quem quer que seja o direito de partir para cima de dedo em riste, tumultuando ainda mais a situação no local do acidente. Afinal, não se trata de doença, mas de uma gestante que acabara de bater forte a cabeça e que mais tarde seguiu por conta própria para o hospital. Fora o nervosismo, o estresse e a tensão, que apresentada o risco de ser totalmente sentida pelo feto, como a ciência já bem comprovou.
Acidentes são uma somatória de fatores
Todo acidente de trânsito comporta uma somatória de fatores: o homem, o veículo, a via e o ambiente, mas, sempre brota de uma infração e pode ficar pior quando as pessoas estão de cabeça quente. Por outro lado, preferência não é direito adquirido, mas uma prerrogativa para garantir a fluidez para que todos circulem de modo confortável e seguro evitando o acidente. Nem sempre quem tem a preferência é inocente ou culpado e não são os envolvidos, os familiares ou os curiosos que decidem isso.
Sabem aquela velha história de quem bate atrás é culpado? Pera lá que não é bem assim que funciona! Se um condutor imobiliza o seu veículo em um semáforo com ladeira, o carro volta e bate no de trás será que o condutor que estava atrás teria sido mesmo o culpado pelo acidente?
Será que mesmo um condutor que tenha a preferência em um cruzamento, se deixar de tomar os devidos cuidados e podendo evitar o acidente não o faz só porque se acha o dono da preferência, não teria ele a sua parcela de responsabilidade a ser assumida?
Diz o CTB que todo condutor deve manter a distância de segurança (art. 29, II), dirigir sempre na velocidade regulamentada na via para não praticar o excesso de velocidade, mas também é máxima da segurança no trânsito que não se pratique a velocidade excessiva (quando mesmo na velocidade da via se aplica velocidade inadequada para aquela situação).
Também não podemos esquecer do artigo 34 do CTB, que determina que o condutor que queira executar uma manobra deverá certificar-se de que pode executá-la sem perigo para os demais usuários da via que o seguem, precedem ou vão cruzar com ele, considerando sua posição, sua direção e sua velocidade. E isso vale tanto para o condutor que cruza a via convergindo por um espaço permitido no canteiro central quanto para o condutor que se aproxima dele pela via que o senso comum eterniza como “principal.” Afinal, são fluxos que se cruzam e os cuidados devem ser redobrados por todos os condutores. Preferência não é direito adquirido e se tivermos de abrir mão dela para evitar o pior, que o façamos pelo bem de todos.
Rastro de frenagem pode até sugerir a presunção de excesso de velocidade ou velocidade excessiva, mas quem decide isso não são os envolvidos, os agentes de trânsito e, tampouco, familiares, curiosos ou quaisquer outros que façam alguma especulação. O boletim de ocorrência de acidente de trânsito e o laudo coletam as informações necessárias que serão encaminhadas à esfera judicial para que o magistrado decida e sentencie.
Assim que os agentes de trânsito chegaram ao local para o atendimento e com a situação aparentemente controlada eu e minha aluna fomos embora, afinal, já tínhamos feito a nossa parte em informar a necessidade de atendimento no local, acalmar as pessoas e tentar evitar o bate boca. Mais tarde eu soube que a situação ficou tensa de novo e que a gestante tinha sido encaminhada pela família ao hospital.
De qualquer forma, ficou do incidente a preocupação em esclarecer a população sobre os cuidados que se deve ter na vida e no trânsito, e o alerta de que gritar, xingar, bater boca, apontar dedos e ânimos exaltados só pioram as coisas porque roubam o equilíbrio e a lucidez que o momento exige.
Para as minhas alunas ficou a lição prática que não estava programada, afinal, era só para ser um aula explicativa direto no trânsito a partir da observação do comportamento e práticas dos condutores em via pública.
Passado o momento tenso do pós-acidente, mais calmos, que todos os envolvidos se entendam e tudo termine bem. Mas, que assim como as minhas alunas, aprendam que a primeira coisa que se deve fazer é procurar saber se todas as vítimas e envolvidos estejam bem, sem ferimentos, se inspiram cuidados e socorro. Isso sim, tem mais valor do que qualquer lataria amassada e a nossa humanidade não precisa enferrujar junto.