A capital da cerveja também precisa ser capital da responsabilidade no trânsito

A capital da cerveja também precisa ser capital da responsabilidade no trânsito
Foto: Reprodução

Friday, 10 March 2017

Blumenau é a terceira em acidentalidade, feridos e mortos no trânsito dentre os 295 municípios catarinenses.

Blumenau está prestes a receber oficialmente com a assinatura do Presidente da República o título e o reconhecimento da Capital Nacional da Cerveja ao mesmo tempo em que desponta e se consagra como polo cervejeiro do sul e do país. Parabéns por tudo de bom que isso vai trazer, com certeza, para a nossa cidade e aos nossos empreendedores do ramo.  Mas, por mais desconfortável que possa parecer para alguns, não tenho como fugir ao juramento que fiz quando recebi o grau de minha formação em Segurança no Trânsito e nenhum problema em abordar sem artifícios um tema tão delicado. De que forma isso vai afetar a acidentalidade em uma cidade em que diariamente, a qualquer hora do dia ou da noite, recolhem-se corpos vivos ou mortos de feridos em acidentes provocados por condutores embriagados enquanto muitos bebem, dirigem, batem e abandonam os seus veículos em via pública? Isso não exigiria que nos tornássemos também a capital da segurança, da fiscalização, da prevenção e da responsabilidade no trânsito? 

Então, vamos falar abertamente sobre esses fatos da via cotidiana em Blumenau. A cidade é a terceira em acidentalidade, feridos e mortos no trânsito dentre os 295 municípios catarinenses, destacando-se também pelas ocorrências de embriaguez. Precisou que o Tribunal de Contas da União desse um aperto no Detran para que se automatizasse a busca por processos de condutores embriagados e o resultado é que mais de meio milhão de motoristas catarinenses terão o direito de dirigir suspenso de 2 a 12 meses. O estado de Santa Catarina é o segundo no ranking do Ministério da Saúde em violência no tr e também nos casos envolvendo embriaguez. 

Diariamente, em Blumenau, quase que diariamente, a qualquer hora do dia ou da noite e madrugada, um condutor embriagado bate contra postes, cercas muros, árvores, casas, atropelam e muitos deles fogem, abandonam o veículo. A tentativa de justificar a quantidade de acidentes pelo tamanho da frota já não cola mais porque eles batem sozinhos na via ou quando experimentam a ação da força centrífuga dentro de uma curva somada ao fator velocidade + birita. Que nos digam os bombeiros, os colegas da imprensa que a todo o momento percorrem mais de um local ao mesmo tempo para trazer ao conhecimento da população esses fatos. 

O fato é que as constantes festas regadas a bom chope e boa cerveja enaltecem a cultura, a gastronomia, todo o legado da colonização germânica na cidade e projetam a cidade, atrai turistas, gera emprego e renda, alavanca a economia. Mas, quantos acidentes foram provocados por saídas dessas festas e que poderiam ser evitados? 

O fato é que por aqui se incentiva o ano inteiro o consumo de bebidas alcoólicas e em bem menor proporção se incentivam as práticas seguras no trânsito. A Oktoberfest mal termina e já se começa a planejar a próxima: o tema, os cartazes, os desfiles e outros detalhes da programação com o esmero e excelência de sempre que não vemos em relação às práticas seguras no trânsito. E olha que bastava se inspirar na organização da Oktober para fazermos excelência em prevenção e em segurança no trânsito também. Mas, só que não. Nem quanto se arrecada com multas na cidade e a destinação moeda por moeda desse dinheiro ninguém sabe, ninguém viu, a depender da devida publicidade e prestação de contas. 

Violência no trânsito naturalizada 

A queda do avião da Chapecoense chocou o país e o mundo pelos 71 mortos. Gerou uma comoção que ainda nos faz brotar água dos olhos cada vez que lembramos ao mesmo tempo em que esquecemos  das 291 outras vidas perdidas em acidentes de trânsito diários no país. Isso não choca? Isso não comove também? 

Por favor, sem esse papo piegas de falso moralismo e vamos reconhecer logo que aqui se consome bebidas alcoólicas prá caramba; Blumenau já é a cidade com maior consumo de cerveja no país; nossas festas têm sempre o chope e a cerveja como protagonistas; não temos fiscalização, efetivo e bafômetros que chega para realizar operações e blitz da Lei Seca, que em 19 de junho completa 9 anos e por aqui só foi realizada uma vez nas primeiras edições do Maio Amarelo. 

Os acidentes de trânsito foram naturalizados? 

O fato é que assim como os acidentes de trânsito praticamente se naturalizaram, também se naturalizou o ato de dirigir depois de consumir bebidas alcoólicas e muitos desses condutores bebem e saem dessas festas ao volante ou segurando o guidom da moto.

Dentre os argumentos de quem insiste em tapar o sol com a peneira destaca-se o “bebe quem quer, se dirigir depois é problema dele.” E não é não! É problema nosso, de todos, por uma série de motivos e de previsões legais que todo gestor da segurança no trânsito bem conhece ou deveria conhecer. 

  1. Primeiro, que quando um cidadão desses que atende ao apelo de uma festa regada a bebidas alcoólicas bebe e dirige a decisão de dirigir pode ser dele, mas vai movimentar o aparato público que só entre 2003 e 2011 gastou 1,7 bilhão em atendimento de acidentes de trânsito. Dinheiro público, meu, seu, que saiu dos cofres da prefeitura e que faz falta! 
  1. Vai movimentar socorristas, médicos, enfermeiros, ambulâncias, emergências de hospitais, leitos hospitalares de internação e de UTI, custos com biológicos, cirurgias, custos previdenciários e outros custos sociais altíssimos! Ou vai dizer que o trabalhador em idade econômica ativa que se acidenta no trânsito, se afasta do trabalho, aumenta o absenteísmo e encarece as empresas não vai mexer com a economia e a vida produtiva da cidade? 
  1. Está lá no art. 1º do CTB que o trânsito em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito; 
  1. Está lá no CTB que os órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro; 
  1. Que os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao Sistema Nacional de Trânsito darão prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio-ambiente. 

Porque não temos um plano de prevenção para as catástrofes no trânsito? 

Que bom que a cidade encontrou na cerveja e no chope um pilar forte de sustentação do turismo, da economia, dos novos negócios e da prosperidade! Isso também me alegra e não é o foco de toda a preocupação. O que me preocupa como profissional da Segurança no Trânsito com vida e voz ativa nos assuntos relacionados ao trânsito na cidade e no país são as consequências de não conseguirmos acompanhar essa evolução em termos de fiscalização de quem bebe e dirige, de educação e de prevenção de acidentes de trânsito. 

Em outro segmento que a cidade se destaca é o do plano de prevenção de catástrofes, outro ponto que muito nos orgulha, com treinamento nas escolas, nas comunidades, com envolvimento de todas as forças de segurança e lideranças comunitárias e políticas. Mesmo sem saber quando as catástrofes naturais vão acontecer. Mas, os acidentes de trânsito também protagonizam catástrofes diárias que dizimam vidas que poderiam ser poupadas e pulverizam sofrimento e dor para centenas de famílias blumenauenses por ano! Porque não temos um plano de prevenção de acidentes de trânsito com o mesmo empenho, entrega, comprometimento e investimento? 

Bem lembrando as palavras de Rodolfo Rizzotto, que doença é essa chamada irresponsabilidade no trânsito que faz com que as pessoas, dentre outras práticas perigosas, bebam, dirijam e saiam por aí colocando-se a si próprios e aos outros em risco no trânsito no país em que o doente mata o são? 

Por aqui se costuma dizer que se bancamos uma festa e convidamos as pessoas, não vamos querer punir os nossos convidados na saída, principalmente, quando somos nós que fornecemos as bebidas. 

 Mas, mesmo bancando a festa, também cabe a responsabilidade objetiva (e legal no que tange ao art. 24 do CTB em relação às competências dos municípios para a segurança no trânsito) de orientar os seus convidados, de sensibilizá-los à conscientização, de preveni-los sobre os riscos de beber na festa e dirigir depois. Cabe, inclusive, a tarefa de fiscalizar e de punir os convidados quando eles exageram, quando quebram as regras e normas coletivas, sociais, legais e, acima de tudo, as leis da segurança na vida e no trânsito. Principalmente, se o seu convidado colocará a própria vida e a dos outros em risco por conta do que você ofereceu na sua festa. É ético, de bom tom e demonstra preocupação, cuidados e responsabilidade para com quem faz a sua festa ser divertida e até lucrativa. 

Fatos é que não faltam diante da realidade cotidiana da acidentalidade e da segurança ou falta dela no trânsito.  Quando o dono da festa impõem as regras os convidados tornam-se responsivos. 

Temos de comemorar sim todas as conquistas para a cidade e Viva Blumenau que agora é a capital nacional da cerveja e terá um monte de coisas boas acontecendo em função disso. Mas, nem tudo é só “Prosit” e canecos espumantes acima da testa. Está mais do que na hora de a cidade acompanhar essa conquista com ações de fiscalização, de educação para o trânsito e de prevenção de acidentes provocados ou não por embriaguez ao volante. E se faltam recursos, investimentos, efetivos e equipamentos, que nos mobilizemos incansavelmente para conseguir. 

Não podemos ter compromisso com a indiferença para evitar melindres ou constrangimentos em relação a um tema extremamente nevrálgico e delicado para alguns. Até porque o bom paladar e os bons negócios para o chope e a cerveja podem ser culturais. O que não é cultural e nunca deverá ser é naturalizar acidentes de trânsito, o beber e dirigir e o faz de conta que isso não traz consequências para todos no trânsito. Está aí uma conta que todo mundo paga. 

 


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Márcia Pontes

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