Arrecadação com multas: faça o que eu digo, não faça o que eu faço

Arrecadação com multas: faça o que eu digo, não faça o que eu faço
Foto: Reprodução

Wednesday, 29 March 2017

Onde está sendo aplicada cada moedinha da contribuição diária dos nossos motoristas infratores?

Os agentes de trânsito de Blumenau juntamente com o olhar fiscalizador das lombadas eletrônicas e dos radares portáteis (os famosos secadores de cabelo) deram exatas 139.445 caneteadas em condutores que cometeram algum tipo de infração no trânsito. O resultado disso é coisa grande e contabilizado em milhões: R$ 12,7. Mais do que paga cada um dos prêmios de loteria da Caixa por sorteio. Só que trânsito não é loteria: é cautela, é prudência e se deixar de cumprir alguma das leis de trânsito não será novidade receber o auto de notificação em casa. O que cada cidadão faria com esse prêmio de loteria já se tem uma ideia, mas, o que o município faz com essa grana toda é o que a população ainda quer e precisa saber. Onde está sendo aplicada cada moedinha da contribuição diária dos nossos motoristas infratores? Leis e resoluções do Contran e a própria Lei da Transparência já existem determinando que a prestação de contas pela internet, mas diante do descumprimento pelo município, vereadores, na melhor das intenções, tentam passar projetos de lei com histórico de serem barrados por inconstitucionalidade. 

O que não faltam são leis e resoluções determinando a prestação de contas do que se faz com o dinheiro das multas em todo o território nacional, mas os mesmos órgãos que punem os motoristas que desrespeitam as leis de trânsito não vêm cumprindo as leis que são obrigados a respeitar. Fica feio, falta transparência, falta compromisso, falta prestar contas e falta o exemplo também. Afinal, quem pune o motorista infrator precisa dar o exemplo e mostrar que é o primeiro a cumprir as leis. 

Não precisa de lei municipal para determinar e obrigar o município a prestar contas de dinheiro arrecadado com multa. Muito menos, quando o projeto de lei parte da iniciativa de vereadores. Quem diz isso não é a Márcia Pontes cujas tentativas de esclarecer e orientar a população neste sentido, muitas vezes, é confundida com deselegância: é o próprio Código de Trânsito Brasileiro tão desprezado, pouco lido e respeitado. São as resoluções do Contran e a própria Lei da Transparência. 

A começar pelo clássico artigo 320, que dispõe que a receita arrecada com cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito, essa raridade para além de ações descontextualizadas e descontinuadas para além das datas comemorativas. Porque será que os municípios não têm políticas públicas sérias e sustentáveis o ano todo para a segurança no trânsito? Falta dinheiro?

A segurança no trânsito no mundo de faz de conta 

Infelizmente, vivemos no trânsito do país o mundo do faz de conta em que os discursos dizem uma coisa e as práticas mostram outra coisa. Diz ainda o § 1º do artigo 320 que o percentual de 5% do valor arrecadado com as multas de trânsito em cada município será depositado, mensalmente, na conta de fundo de âmbito nacional destinado à segurança no trânsito, o Funset – Fundo Nacional de Segurança no Trânsito. Na prática funciona assim: o governo federal, por meio do Funset, que é administrado pelo Denatran, junta a dinheirama toda para aplicar em ações nacionais de educação para o trânsito. Só que retém mais de 80% desse dinheiro. 

Sabem quanto isso dá, em média, anualmente? Milhões! Outros montes de milhões que ano a ano vêm sendo foi contingenciado pelos sábios do Tesouro Nacional para outras finalidades: sustentar o superávit primário das contas nacionais e, assim, assegurar o pagamento fiel dos juros aos detentores da dívida pública. É isso que é feito com o dinheiro das multas de todo o país. Dinheiro que deveria ir para ações de segurança e educação para o trânsito. 

Em 2014 o Portal Contas Abertas divulgou à sociedade que do total de R$ 860,6 milhões orçados para as iniciativas do fundo, apenas 26,8% foram pagos. Dos 997,1 milhões arrecadados em 2015, apenas 12% foi liberado em 2016 para as obrigatórias ações de segurança no trânsito no país. Ou seja, 906,7 milhões ficaram congelados no orçamento da União. 

Para 2017, novamente o Portal Contas Abertas divulga que dos R$ 1,1 bilhão que autorizados em orçamento para iniciativas de segurança e educação no trânsito, por meio do Fundo Nacional de Segurança e Educação no Trânsito (Funset), cerca de 88% dos recursos não serão utilizados e irão auxiliar na redução do déficit primário. Pois é, desse jeito como é que a gente rebate as acusações de uma suposta indústria da multa no país mesmo sabendo que só é autuado quem comete a infração?   

Ficamos com a cara no chão, indignados, envergonhados enquanto profissionais da segurança no trânsito e cidadãos que esperam bem mais compromisso com ações voltadas à segurança no país que já é o primeiro em mortes no trânsito na América Latina e 4º no mundo em números absolutos. 

E para piorar, muitos municípios têm dinheiro para receber do governo federal e por falta de conhecimento (muito pelo preço de indicações políticas de gestores sem formação específica na área), estão deixando essa grana lá, parada, sem aplicação nas suas cidades que muito precisam de muitas melhorias. Esse foi o motivo do Denatran ter feito um encontro com representantes dos municípios já no início de fevereiro: “Tem município que tem valor a solicitar, em vários estados, e às vezes não tem conhecimento por não saberem operacionalizar”. Clique para saber mais: http://www.viacertanatal.com/2017/02/denatran-esclarece-sobre-arrecadacao-e.html 

Faça o que eu digo, não faça o que eu faço 

Na prática, quando se alinha as responsabilidades dos cidadãos e dos municípios em relação à segurança no trânsito funciona assim: façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço. O cidadão comum peca quando critica a existência de uma suposta indústria local da arrecadação com multas, mas comete a infração. Já os municípios pecam quando exigem que os cidadãos cumpram com as leis de trânsito e furam feio o que diz o artigo 24 do CTB (sobre cumprir e fazer cumprir as leis de trânsito que, muitas vezes, não cumprem) e o próprio artigo 302 do CTB, sobre divulgar em detalhes a arrecadação e destinação com multas de trânsito. E ainda mais o artigo 71 do CTB, que obriga: 

Art. 71. O órgão ou entidade com circunscrição sobre a via manterá, obrigatoriamente, as faixas e passagens de pedestres em boas condições de visibilidade, higiene, segurança e sinalização. 

Poxa vida, foram R$ 12,7 milhões arrecadados com multas de trânsito só em Blumenau, gente! Não sobrou nada para pintar e revitalizar as faixas de pedestres deixando-as visíveis, limpas, seguras e sinalizadas como a lei obriga a fazer? 

Será que essa situação que se repete em muitos municípios brasileiros “acontece” por falta de quê? De fornecedor de tintas? De pessoal para pintar as faixas? Ou será que no CTB deles o artigo 71 também está tão apagado quanto as próprias faixas de pedestres? Quantas estão apagadas em frente ao próprio órgão de trânsito? 

Quando o cidadão comum descumpre alguma lei de trânsito ele é autuado e punido com a multa. Mas, e quando é aquele que deveria cumprir o que as leis de trânsito OBRIGAM para dar o exemplo e não cumprem, quem os autua? Quem os pune? Resposta: é o Ministério Público desde que seja provocado por meio de denúncia de qualquer pessoa do povo, anexadas as fotos e vídeos da “infração”. Compreendem o “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”? 

Definitivamente, não cabe utilizar o artigo 30 da Constituição Federal para tentar justificar que o município age em interesse local para tentar matar o artigo 22 que diz que legislar em assuntos de trânsito é de competência exclusiva da União. Ainda mais quando as leis estão expressas na própria lei que é o CTB, nas resoluções do Contran e na Lei da Transparência. É jogar saliva fora, chover no molhado, é atrasar a propositura e a votação de projetos igualmente importantes. As leis já existem obrigando a divulgar a destinação do dinheiro das multas! O que precisa ser feito é utilizar dos mecanismos adequados para fazer cumprir essas leis e obrigar os municípios a divulgarem em detalhes para onde vai cada moedinha. Simples assim. 

Basta pegar o CTB, ir no artigo 302 e ler também o § 2º: “O órgão responsável deverá publicar, anualmente, na rede mundial de computadores (internet), dados sobre a receita arrecadada com a cobrança de multas de trânsito e sua destinação.” Em vigor em incluído pela Lei 13.281/2016. 

O problema no nosso país é fazer leis para tudo, até para o que já é regulamentado por lei, por não cumprir as leis que já existem. Sinceramente? Para a questão da divulgação dos valores de multas não está faltando leis na cidade ou no país: está faltando mesmo é cumprir as leis existentes. Está faltando é que deixe de existir dois pesos e duas medidas para sairmos desse “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”.


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Márcia Pontes

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