O cavalo pintado e a deseducação das instituições de ensino

O cavalo pintado e a deseducação das instituições de ensino
Foto: Divulgação

Monday, 23 July 2018

Polêmica, acusações, bem como muita hipocrisia e contradição por parte da hípica revelam um cenário indigesto, mas que cedo ou tarde deverá ser encarado.

A polêmica da semana nas redes sociais envolve o cavalo Thor, da Sociedade Hípica de Brasília (DF), que teve divulgada uma foto sua (acima) na internet, com sua pelagem branca completamente pintada por crianças durante uma atividade de colônia de férias.

Quando recebeu as fotos com o belo cavalo de 14 anos todo pintado, a advogada Ana Paula Vasconcelos – da Comissão de Defesa dos Direitos dos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF) – registrou uma ocorrência na Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (Dema) e uma representação junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Muitos textos têm acompanhado a foto que, fora de contexto, podem dar impressões bilateralmente opostas sobre a situação. O fato é que crianças pintaram um cavalo. Ponto.

Técnicos do Instituto Brasília Ambiental (Ibram) estiveram na hípica e não encontraram vestígios de maus-tratos. O diretor da escola, José Cabral, explicou que a tinta usada é atóxica e solúvel em água, dizendo que essa atividade é uma prática comum no meio e que em momento algum o animal foi destratado.

Ele explica que Thor é um cavalo manso de 14 anos usado na terapia de crianças e que a atividade lúdica foi criada em parceria entre uma pedagoga e veterinários. Realçou, também, que lida com equinos desde criança e que respeita sobremaneira os animais. A hípica publicou um vídeo da atividade para mostrar que o animal não sofre estresse e que a pintura sai fácil.

De fato, dificilmente um animal é maltratado numa sociedade de hipismo, mas o caráter ‘pedagógico’ da atividade tem sido bastante questionado. Para a advogada que entrou com a representação contra a escola o repúdio da sociedade é uma prova de que os brasileiros não toleram esse tipo de tratamento. A postagem original dela com a fotografia no Facebook já conta com mais de 25 mil compartilhamentos, 26 mil curtidas e 15 mil comentários.

A pedagoga Jeana Oliveira, especializada em autismo, afirma que atividades envolvendo crianças e animais são muito saudáveis, mas questiona o valor ‘pedagógico’ da ação denunciada. Para ela: "A interação com o animal é algo importante, prazeroso. Você começa a estabelecer vínculo, respeito aos seres vivos. O problema é usar o animal como um 'recurso' de pintura. Essa associação pode, sim, trazer prejuízo".

Dessa forma, mesmo que Thor esteja acostumado com esse tipo de ação invasiva, as crianças – que ainda estão em estado de formação moral – podem acreditar que isso é natural e reproduzir comportamentos similares ou até piores em outros animais, colocando ambos em risco.

Outro ponto a ser considerado é que em todos os seus pronunciamentos, Cabral fez questão de salientar que Thor foi um animal resgatado e que não competia. Contrapondo-o, Ana Paula afirmou: "Se fosse um animal de sangue puro, com um valor econômico alto fariam isso? Usaram o animal como objeto?”, afirmando que esteve no local após a denúncia e viu Thor triste e acuado.

A verdade é que Thor foi, sim, objetificado. Transformado numa mera tela em branco para que crianças que muitas vezes ainda não têm discernimento sobre o que poderia ferir um animal se divertissem. E isso é errado em muitos níveis porque desrespeita o cavalo e coloca os alunos em perigo (mesmo que fora da escola, por reproduzir o padrão da atividade que gostaram, mas sem supervisão).

Infelizmente objetificamos animais todos os dias. Desde o cachorro que só foi ‘comprado’ para servir como alarme barato na casa, até o cavalo que puxa carroças, o gato preto visto como alvo de má sorte por beócios ou a picanha no nosso prato que, um dia, foi um boi.

Pintar um cavalo que não tem como se defender soa certo. Mas se uma criança fosse pintada contra a vontade seria abuso. Caso fosse uma mulher, idem. Um homossexual, crime de homofobia. Um negro, racismo. Um adulto branco, danos morais e desrespeito aos seus direitos. Mas cavalos, cachorros, bois, aves, gatos e demais animais podem ser desrespeitados.

Não, senhores. Talvez... e apenas TALVEZ... não tenha havido crime de maus-tratos contra Thor, mas o abuso é claro. E a diferenciação feita pela escola por seu status de ‘resgatado’ também.

Como disse a advogada – “Precisamos de uma sociedade mais consciente e de valores para as crianças. Nossa avaliação é que essa atividade deve ser retirada da Colônia de Férias da hípica. A sociedade reprovou o ato, portanto estamos evoluindo no respeito aos animais” – sendo complementada pelo parecer da pedagoga – “É até meio contraditório. Eu ensino a escrever no animal, e depois ensino a lavar o animal? Como se a primeira ação fosse algo errado? A gente limpa coisas que outra pessoa vai usar, o animal não é esse tipo de acessório. A gente não ensina a bater pra ensinar a pedir desculpas".

É esse mundo que queremos criar? Porque já há precedentes para ladrões tatuados por seus crimes. Mesmo desrespeito, com a diferença que o cavalo não incorreu em crime algum.


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Ricardo Latorre

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