O motorista que dirige sem pneu e os pilares fraturados do trânsito seguro
Foto: DivulgaçãoTuesday, 24 January 2017
Nem parece que estamos vivendo e transitando todos os dias no país mais violento no trânsito da América Latina e que no mundo ocupa a 4ª posição das mortes no trânsito.
O vídeo que viralizou na internet nos últimos dias mostrando um motorista dirigindo sem um pneu na traseira em plena BR 101 (isso mesmo, só com a roda), a mais de 100km/h, cheio e com crianças, ultrapassando os demais veículos e ainda “puxando na seta” como se estivesse intimando os demais motoristas a sair da sua frente surgiu como um dos ícones da imprudência em nossas rodovias. Foi em Santa Catarina, no dia 4 de janeiro, em um dos trechos considerados mais perigosos, entre Itajaí e Balneário Camboriú. No vídeo, a passageira do veículo que trafegava atrás focaliza bem o veículo trafegando apenas com a roda enquanto narra que já fazia um bom tempo que o condutor vinha ultrapassando com o veículo nessas condições, dando seta pedindo ultrapassagem. Não ficou claro no vídeo se ela tinha acionado o número 191 de emergência da PRF, mas outras pessoas o fizeram e mesmo assim o condutor escapou, não foi flagrado e nem autuado. Aquele tipo de coisa que nos deixa sem palavras. Clique aqui para ver o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=viBHVVp6vNQ&t=6s
Nem parece que estamos vivendo e transitando todos os dias no país mais violento no trânsito da América Latina e que no mundo ocupa a 4ª posição das mortes no trânsito. Nem parece que vivemos no país em que morre por ano bem mais do que as cerca de 50 mil mortes oficialmente anunciadas e deixa uma legião de mais de meio milhão de sequelados. Será que a criança que estava no carro estava segura pelo dispositivo de proteção adequado à sua idade?
A gente fica aqui se perguntando o que se passa na cabeça de um condutor para trafegar em uma rodovia lotada em plena temporada de verão como a BR-101 sem o item de segurança mais do que básico e obrigatório: o pneu. O carro pende naturalmente para o lado direito enquanto o condutor força a seta e chega a colar no veículo da frente como se estivesse intimidando o condutor para que desse espaço para a ultrapassagem.
Inevitável não imaginar quais seriam as desculpas do condutor: perdeu a roda e estava correndo para chegar ao posto da PRF ou à borracharia mais próxima? Não, não pode ser. O juízo manda que coloque o veículo no local seguro fora da via, estacione no acostamento mais próximo, ligue o pisca-alerta, sinalize com antecedência e saia do carro com a família, acione o socorro da concessionária e aguarde até que a ajuda chegue.
Aos de bom senso indigna por uma série de motivos: não só porque trafega sem pneu, só na roda; não somente porque o carro está cheio e tem criança a bordo; não só pela imprudência, ousadia e pela falta de percepção do condutor para o alto risco à si próprio, aos seus passageiros e aos demais usuários da via, mas porque esfrega na nossa cara a triste realidade dos pilares que sustentam o trânsito seguro, dentre eles a educação e a fiscalização.
Afinal, do que vale um CTB com mais de 400 infrações tipificadas se não se tem condições de fiscalizar e de punir os infratores? Um claro sinal de que a fiscalização sozinha não é a solução para tudo, não resolve tudo como alguns pensam e discursam em microfone aberto.
Um claro sinal de que trânsito seguro é comportamento, é regra de conduta, é questão de educação, de consciência, de responsabilidade e de amor à vida. É fato que o que somos na vida trazemos para dentro de nossos veículos e estabelece a forma como agimos, pensamos, nos comportamos e dirigimos. Mostra como nos posicionamos na vida e na via.
Trânsito seguro é uma poção com muitos ingredientes: engenharia, educação, fiscalização, comportamento, responsabilidade, condutas preventivas, prudência, segurança, juízo, bom senso, cara limpa. Só que aquele ingrediente que necessita ser adicionado em doses cavalares, que é uma cultura voltada ao respeito à vida e à segurança no trânsito, esse parece não existir.
É justamente por falta de uma plataforma cultural bem consolidada e voltada para a segurança que impera a cultura do “não vai dar nada”; impera o sentimento de impunidade, fortalecido pela crença de que é carro demais e poucos policiais e agentes para fiscalizar, flagrar e punir até o mais hediondo dos crimes de trânsito.
Parece que o sentimento coletivo de valorização da vida vai diminuindo cada vez que alguém mata no trânsito, sai impune ou paga pelo homicídio sobre rodas a quantia de algumas cestas básicas. É isso que vai se somando à sensação de que o bem mais valioso a ser tutelado, que é a vida, está perdendo o valor. Se o bem mais valioso deprecia, qual o valor das outras coisas?
Por isso, é que um CTB com mais de 400 infrações tipificadas não intimida ninguém, mesmo sendo o acidente de trânsito a infração que deu errado e, justamente por isso, precisa ser coibida, evitada e o condutor autuado. É por falta de fiscalização eficiente e pela falta de efetivo que os agressores no trânsito escapam ilesos e quando são flagrados ressoam e proliferam a cantilena dos “injustiçados” pela indústria da multa.
É por falta de uma cultura voltada para a segurança e por falta de uma visão voltada para a educação para o trânsito enquanto fenômeno coletivo que nos faz distribuir panfletos em vez de políticas públicas sérias, sustentáveis e que envolvam toda a população, que não conseguimos sensibilizar os infratores. E some-se a isso as altas somas em dinheiro arrecadadas com multas no país que fica trancada nas mãos do governo federal destinada a outras finalidades, fazendo com que o exemplo que vem de cima inspire os demais gestores nas cidades aos desvios de finalidade com o dinheiro das multas. Mas, ainda assim, não justifica deixar os infratores impunes.
Claro, que entram os componentes intrínsecos, pessoais, individuais, tais como: o comportamento, o modo como o condutor vê o mundo, como respeita os outros e as leis de trânsito, os juízos e valores pessoais, a responsabilidade, a conduta, o respeito, o bom senso e a prudência. O fato de acreditar demais nas habilidades que tem ou pensa que tem, o sentimento de impunidade, as pequenas corrupções do dia a dia, o fato de querer levar vantagem em tudo, o individualismo, o egoísmo....
Como veem, caros leitores, o trânsito é um fenômeno complexo, tão complexo quanto as sinapses que ligam os neurônios, e toda discussão que não leve em conta que as ações para um trânsito seguro precisam ser integradas, contextualizadas e sistêmicas serão vazias.
Precisamos sair do modelinho legal que tenta intimidar aumentando valores de multa porque isso não intimida ninguém sem uma fiscalização eficiente. Ou será que o medo da multa barrou o motorista dirigindo só na roda? Valores altos e salgados sim, mas combinados com outras ações estruturais.
Precisamos sair do modelinho padrão de imprimir panfletos como se educação para o trânsito se resumisse só a isso, sem ter como medir qualquer responsividade aos apelos por mais segurança.
Precisamos tirar o conhecimento privilegiado das mãos dos especialistas e fazê-lo chegar de modo simples e na linguagem adequada à população, por meio da informação e da orientação. Só assim a população protagonista dos acidentes se tornará mais próxima de nós e protagonista da prevenção.
Precisamos encontrar uma linguagem para chegar aos mais jovens que lideram as estatísticas da violência no trânsito; para chegar aos infratores contumazes ou não; precisamos abraçar a segurança no trânsito não apenas como discurso e status de “causa”, pois enquanto as ações não forem dignas de quem luta por uma causa sabe-se lá que outros tipos de imprudências continuaremos flagrando no trânsito.
Precisamos mesmo rever os nossos ideais de felicidade para constatar que a felicidade maior é estar vivo. Quem sabe assim, algum dia as pessoas saiam de casa com o seguinte questionamento antes mesmo de entrarem em seus veículos: o que eu vou fazer hoje para não me machucar e não machucar ninguém no trânsito?
Texto: Márcia Pontes