Como a máquina de propaganda da China retrata a guerra comercial com os EUA

Como a máquina de propaganda da China retrata a guerra comercial com os EUA
Foto: Divulgação

Tuesday, 21 May 2019

A máquina de propaganda chinesa mais uma vez se organiza para contrapor os Estados Unidos.

Depois de dias de silêncio desde que o presidente americano, Donald Trump, impôs tarifas a US$ 200 bilhões em produtos da China, os meios de comunicação do país asiático - controlados pelo Estado - começaram a responder na semana passada com uma incomum campanha contra a guerra comercial com Washington.

Em uma série de editoriais e artigos de opinião, os jornais e emissoras de TV passaram a recordar o histórico passado chinês para assegurar que o país resistirá, uma vez mais, a pressões, à "avareza" e à "arrogância" americanas.

"Toda a China e seu povo estão sendo ameaçados", disse editorial publicado na agência Xinhua e no Diário do Povo, "porta-voz" do Partido Comunista. "Para nós, isto é uma verdadeira 'guerra do povo'."

Outra declaração lida no noticiário da emissora CCTV dizia que a China "lutaria por um novo mundo" e superaria o impacto econômico da disputa. "Depois de 5 mil anos de vento e chuva, a que a nação chinesa não resistiu?", questionava o locutor.

Já o jornal Global Times, voz de Pequim no idioma inglês, acusou o governo de Trump de enganar os americanos a respeito de quem seriam as verdadeiras vítimas das sobretaxas.

"(A taxação) causará muitos danos autoinfligidos e são de difícil sustentação no longo prazo", diz o texto. "A China, por outro lado, vai evitar se prejudicar."

Enquanto isso, o tema também ganhava espaço nas redes sociais chinesas, com memes, posts e comentários patrióticos.

Uma foto que pedia que os turistas americanos pagassem mais 25% em impostos foi uma das imagens mais compartilhadas na rede social Weibo, espécie de Twitter chinês.

Pôsteres com ilustrações de militares chineses vencendo invasores americanos também entraram em circulação, junto a pedidos para que as pessoas comessem tilápia chinesa, um produto nacional, de forma a mitigar "a guerra dos EUA".

Segundo o BBC Monitoring, serviço de monitoramento de meios de comunicação feito pela BBC, até a semana passada, a imprensa estatal chinesa mal havia mencionado as tensões comerciais entre Washington e Pequim e focava, sobretudo, as "boas notícias" da economia nacional e como esta havia resistido aos embates globais.

O que mudou?

A enxurrada de artigos e comentários de tom nacionalista sucedeu, na semana passada, ao anúncio de Pequim de que responderia às medidas do governo Trump com novas taxas sobre produtos americanos - cerca de US$ 60 bilhões em mercadorias - a partir de 1º de julho.

"Os meios de comunicação chineses estiveram calados por alguns dias, enquanto a liderança principal avaliava como responder (aos EUA), afirmou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) Bonnie Glaser, diretora do Projeto de Poder Chinês do Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos (CSIS).

Para a analista, as deliberações levaram a uma defesa nacionalista e contundente do sistema, de modo a insistir que a China não cederia à pressão estrangeira.

"Essa liderança, obviamente, percebe que é vulnerável à crítica pública e está tratando de isolar-se de uma acusação de que a China fez concessões sob pressão. A economia está estreitamente vinculada à política, tanto nos EUA como na China", aponta Glaser.

Além disso, segundo outros analistas consultados pela BBC News Mundo, a forma como a China apresenta a guerra comercial a sua população busca não só angariar apoio público, como amenizar impactos econômicos e defender-se de potenciais questionamentos que sejam feitos ao presidente Xi Jinping e ao Partido Comunista.

"O objetivo é mostrar que Xi Jinping está tomando conta desse assunto; que, como fez em outras ocasiões (o então líder chinês) Mao Tsé-Tung (que governou de 1949 a 1976), ele também tentará tirar proveito de uma situação ruim", afirma Anne-Marie Brady, especialista em temas chineses na Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia.

"A resposta nacionalista apresentada nos meios dirigidos pelo Partido Comunista aponta a estimular o apoio popular a Xi, unindo a população chinesa contra as 'forças estrangeiras hostis'", agrega.

Xi sob a mira

Desde que Xi aboliu o limite temporal de sua Presidência, no ano passado, as notícias sobre descontentamentos com o governo cruzaram as fronteiras chinesas.

Seus críticos o acusam de concentrar ainda mais o poder e de promover uma campanha de culto a sua personalidade em nível inédito desde os tempos de Mao.

O mandatário também tem estado sob a mira da comunidade internacional por conta das denúncias sobre sistemas de vigilância massiva da população, de queixas de trabalhadores por jornadas laborais desmedidas e de detenções de membros da minoria muçulmana em campos de detenção na região de Xinjiang.

A cruzada dos EUA também levou a uma pressão sobre diferentes países para que rejeitem os investimentos chineses em alta tecnologia, principalmente a 5G - sendo o auge dessa discussão a polêmica envolvendo a gigante de telefonia Huawei e a prisão, no Canadá, de sua diretora-financeira, Meng Wanzhou.

Mas a gestão de Xi também se viu em apertos por outros temas internos: a segunda maior economia do mundo tem titubeado em alguns indicadores recentes.

A perda de empregos, a desaceleração do crescimento, o aumento da dívida, a falta de investimentos privados, a escassez de crédito e até temas mais urgentes, como o abastecimento de grãos e carne de porco, também causaram descontentamento em distintos setores da sociedade.

"Tem havido certo questionamento a Xi entre a elite chinesa, por concentrar um excesso de poder em suas mãos e por conduzir mal a economia e a relação com os EUA", opina Glaser. "No entanto, não há evidências de que a crítica das elites tenha debilitado a posição de Xi ou de que o público em geral compartilhe desses questionamentos."

Como resposta, Xi disse em janeiro que o Partido Comunista deve fazer "grandes esforços" para enfrentar "grandes riscos em todas as frentes", segundo a agência Xinhua.

Para Elizabeth Economy, diretora de estudos asiáticos do centro de estudos Council on Foreign Relations, recorrer ao nacionalismo não apenas pode servir a Xi para culpar os EUA pelos problemas internos chineses.

"Também ajuda a manter a atenção longe do fato de que a economia chinesa tem uma série de debilidades estruturais que serão realmente prejudicados pelas tarifas (americanas)", diz ela à BBC News Mundo.

Um ano de efemérides polêmicas

Mas as pressões da guerra comercial chegam também em um momento de significado especial para a China.

"Acho que Xi tem medo de aparentar fazer concessões aos EUA de uma maneira que prejudique a dignidade e a soberania da China, especialmente em um ano de aniversários delicados", opina Glaser.

É que em 2019 se comemoram 70 anos desde que Mao fundou a República Popular da China, 60 anos desde o fracassado levante do Tibete contra o governo chinês e uma década desde os distúrbios étnicos em que morreram centenas de pessoas em Xinjiang - noroeste chinês com parcela de população muçulmana.

Mas, sobretudo, é o 30º aniversário das manifestações estudantis que pediam mudanças democráticas na China, e que culminaram em uma sangrenta repressão armada na Praça Tiananmen, um dos fatos que mais ressentimento ainda geram perante a cúpula política chinesa. Há relatos de que o acesso à Wikipedia será bloqueado na China por conta da efeméride, em 4 de junho.

Xi, por sua vez, tem exigido desde o ano passado controles mais rígidos da internet e mais doutrinação para "garantir que a geração de jovens se converta em construtora e herdeira do socialismo".

"Impulsionar o sentimento nacionalista em torno da guerra comercial serve a alguns propósitos para a liderança de Xi: colocar os EUA como malvados em vez do Partido Comunista é uma ferramenta conveniente de distração ao redor de 4 de junho", opina Economy.

Mas, segundo Brady, dada a situação interna da China, é imprevisível se a tática dará retorno de longo prazo.

"Com a desaceleração da economia chinesa, a inflação crescente - afetando sobretudo a alimentação básica e a carne de porco - e a preocupação pela reserva chinesa de grãos, é questionável se a retórica nacionalista terá o efeito desejado", comenta.


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Redação

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