A inflação veio pra ficar
Foto: DivulgaçãoMonday, 01 August 2022
Em países ricos, como Estados Unidos, França e Alemanha, as famílias passaram a encarar as mesmas dificuldades.
A cena é cada vez mais comum nos supermercados: o cliente compara preços, troca marcas, substitui produtos. A carne dá lugar ao frango, que é trocado pelo ovo. Nos postos de combustível, o susto para abastecer o carro. Essa é a rotina do brasileiro em tempos de inflação elevada. Mas o fenômeno não se restringe ao Brasil. Em países ricos, como Estados Unidos, França e Alemanha, as famílias passaram a encarar as mesmas dificuldades.
Economistas afirmam que, em meio à alta dos juros, a inflação nos países ricos deve ceder nos próximos anos. Mas a tendência é de que ela se estabilize em patamares mais elevados, acima de 2%, porque o mundo mudou. A inflação perto de zero ficou no passado.
Sentindo no bolso
Há seis meses, a designer gráfica Marina Fernandes Primo alterou a rotina para proteger seu orçamento da inflação galopante. Uma das estratégias foi parar de fazer compras em um supermercado de rede, com preços mais altos, e passar a frequentar estabelecimentos menores, em busca de promoções. Outra medida foi trocar a carne bovina pelo frango e, depois, o frango por outra proteína ainda mais barata.
O que chama atenção é que a designer, apesar de brasileira, mora desde 2019 em Paris, na França. Com moeda forte e economia equilibrada, a França registrou entre 2010 e 2019 inflação anual média de 0,96%. O cenário mudou.
No intervalo de um ano, o índice se multiplicou quase quatro vezes: saiu de 1,4% no acumulado de 12 meses até maio de 2021 para 5,2% até maio de 2022. Pode ser pouco, já que a inflação no Brasil está atualmente perto dos 12%, mas a alta de preços é um problema social em qualquer lugar do mundo.
"Há uns meses, eu podia achar um pacotinho de carne moída, de 500 gramas, por 4 euros [R$ 23,60 em valores atuais]. Hoje, são 7 ou 8 euros [R$ 41,30 ou R$ 47,20]. Então, não compramos mais. Compramos frango e olhe lá...", afirma a designer. "Estamos optando por peru, que na França é mais barato que frango. Os franceses também fazem esse tipo de troca."
Enquanto o brasileiro troca o frango pelo ovo, o francês troca o frango pela carne de peru. "Très chic".
Um sintoma do movimento é que, em sites franceses, têm proliferado receitas ensinando como preparar a ave, que no Brasil é nobre.
Problema global
Além da França, países ricos como EUA, Alemanha e Reino Unido passaram os últimos anos se preocupando pouco com a alta de preços.
Para o economista Emerson Marçal, coordenador do curso de economia da FGV/EESP (Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), esses países ficaram em situação "confortável" por 15 anos.
"Foi um período de exceção, em que os juros estavam baixos e a inflação ainda não respondia", afirma. "Assim, os países se sentiram à vontade para dar mais estímulos".
A pandemia mexeu com o cenário.
A crise sanitária prejudicou o transporte de mercadorias ao redor do mundo e o fornecimento de insumos para a indústria. Depois vieram a demanda maior por alimentos, a disparada dos combustíveis, a guerra entre Rússia e Ucrânia.
Para fazer frente à crise, os países ricos e emergentes distribuíram dinheiro para a população. Nos EUA, os cheques chegavam pelo correio. No Brasil, o governo utilizou o aplicativo Caixa Tem, da Caixa Econômica Federal, para pagar o Auxílio Emergencial.
As taxas de juros também seguiram baixas por muito tempo, para estimular os negócios.
A situação hoje reflete uma combinação explosiva para os preços: dificuldades na oferta, com procura maior por produtos. O gráfico abaixo mostra o efeito nos países.
Nos 12 meses até maio deste ano, a gasolina ficou 28,7% mais cara no Brasil, conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Na França, o salto também foi considerável, de 24,2%, segundo o Insee (Instituto Nacional da Estatística e dos Estudos Econômicos, na sigla em francês). Nos EUA, o preço da gasolina subiu 48,7%, de acordo com o Departamento do Trabalho.
Abaixo, é possível comparar a inflação de alguns itens nos três países:
Impacto local
A alta de preços se espalhou pelos países, incluindo aqueles pouco acostumados com a inflação.
Na Alemanha, a inflação acumulada em 12 meses se multiplicou três vezes em um ano: de 2,5% em maio de 2021 para 7,9% em maio de 2022. Nos EUA, o percentual saltou de 5% para 8,6% no período. Todas as maiores economias do mundo estão com índices acima dos 2%.
A alta dos combustíveis é uma dor de cabeça para os governantes e fonte de protestos entre a população. Isso também vale para os alimentos, contaminados pela disparada nos custos dos transportes e pelas restrições trazidas pela guerra entre Rússia e Ucrânia.
"Quando começou a guerra, houve uma espécie de pânico. As pessoas foram para o supermercado e começaram a esgotar os produtos", afirma a jornalista brasileira Elisa Junges, que mora em Berlim (Alemanha) desde setembro de 2018.
Um dos exemplos foi o óleo de cozinha, que chegou a ser racionado em alguns supermercados alemães: cada cliente só podia levar um.
Junges conta que as idas semanais ao supermercado, que antes custavam entre 20 e 25 euros (entre R$ 118 e R$ 147,50), agora ultrapassam os 30 euros (R$ 177).
Suporte dos governos
A sensação de que os gastos estão cada vez maiores é comum em muitos países, mas o impacto depende das ações dos governos.
Em Berlim, um passe mensal para uso do transporte público varia de 86 a 107 euros (de R$ 507,40 a R$ 631,30). Com a alta do custo de vida, a BVG (Empresa de Transporte de Berlim, na sigla em alemão) decidiu cobrar apenas 9 euros (R$ 53,10) nos meses de junho, julho e agosto.
Na França, há coberturas com transporte, energia e alimentação, entre outros.
"O programa social é forte. As pessoas têm suporte", diz Marina Primo. "Algumas semanas atrás, recebemos um 'cheque energia' aqui em casa, de 180 euros [R$ 1.062,00]. Foi uma surpresa, porque nunca havíamos nos cadastrado em nenhum programa. O governo identificou que estávamos com a renda baixa."
Segundo Marçal, da FGV/EESP, países como EUA, Reino Unido e França possuem níveis maiores de riqueza, o que aumenta a resistência contra a inflação. "É lógico que, se o problema perdurar, começa a machucar também. A inflação não é indolor, mas dói muito mais em um país em desenvolvimento", afirma.
'Conhecendo' a inflação
A alta de preços não é novidade no Brasil, país acostumado aos surtos inflacionários. Desde que o Plano Real foi lançado, em julho de 1994, houve quatro momentos em que a inflação de 12 meses ficou acima de 10%.
No mesmo período, Reino Unido, França, Alemanha e EUA não viram inflação de dois dígitos.
Recentemente, a situação mudou. No Reino Unido, a inflação em 12 meses passou de 2,1% em maio de 2021 para 7,9% em maio de 2022.
"Os ingleses não sabem o que fazer, como deixar de consumir", diz o brasileiro Adam de Vecchi, diretor de escola em Londres.
Morando no Reino Unido desde 1997, ele afirma que os ingleses, diferentemente dos brasileiros, não estão acostumados com a inflação.
"O óleo, a gasolina, a comida, tudo ficou mais caro. Eu trabalho com assistentes de salas em escolas que ganham 20 mil libras (R$ 140,8 mil) por ano. Isso em Londres não é nada", afirma Vecchi. "E as pessoas não sabem viver com inflação alta, não sabem deixar de fazer coisas, como ir a restaurantes. Nós, como brasileiros, temos aquele jeitinho."
Vecchi tem trocado as idas a restaurantes por passeios ao ar livre. Os encontros com amigos em pubs também deram lugar a reuniões em casa.
Ministro da Fazenda entre 1988 e 1990, o economista Maílson da Nóbrega enfrentou a hiperinflação no Brasil durante o governo de José Sarney. Em 1989, a inflação chegou a 1.972%.
Hoje sócio da Tendências Consultoria Integrada, Maílson reconhece o "jeitinho" brasileiro na hora de lidar com a escalada de preços. "O brasileiro sabe se defender melhor que o americano, por exemplo, porque a inflação não faz parte da história dos EUA".
De 2010 a 2019, a inflação média anual nos EUA foi de 1,75%. Em maio deste ano, o índice em 12 meses bateu nos 8,6%. Um percentual assim não é visto desde o início da década de 1980.
Assim, americanos com menos de 40 anos nunca experimentaram alta de preços como a atual.
"Estamos diante de uma nova realidade. A era da inflação muito baixa, com juros próximos de zero, acabou", afirma Mailson.
Segundo o economista, os países ricos levarão dois ou três anos para atingir uma inflação próxima de 2%, porque a pandemia e a guerra na Ucrânia mudaram o cenário. A pandemia forçou uma espécie de "desglobalização", diz Mailson.
"Durante a pandemia, a escassez de componentes paralisou fábricas no mundo inteiro. Não havia chip para fabricar automóveis", exemplifica. "Agora, a tendência é de que os fornecedores de componentes estejam mais próximos de cada país. E isso significa que o custo pode ser maior."
'Aumento brutal' de combustíveis nos EUA
Moradora de Cary, cidade ao lado de Raleigh, capital do estado da Carolina do Norte, a brasileira Priscila Budway cita o impacto da inflação na hora de abastecer o carro. Assim como no Brasil, a alta do preço da gasolina é um problema nacional nos EUA.
"Três ou quatro meses atrás [início de 2022], eu ainda pagava US$ 40 [R$ 230,80] para encher o tanque do meu carro. Agora, são US$ 70 [R$ 403,90]. Isso é bem dolorido. É um aumento brutal", diz Budway, que é organizadora de eventos.
"Quando a gasolina aumenta aqui, sabemos que tudo vai aumentar: preços de supermercados, roupas, serviços... Para quem aluga uma casa, o preço triplicou. A situação também está terrível para quem vai comprar um imóvel."
Campeões de preços
Ainda que a inflação no Brasil e em países ricos esteja elevada, a situação está longe de ser crítica. Entre os campeões de preços do G20, estão Turquia (73,5% de inflação nos 12 meses até maio) e Argentina (60,7%).
Ambos os países enfrentam desafios trazidos pela pandemia e pela guerra entre Rússia e Ucrânia, mas as dificuldades são anteriores. Em 2019 (antes da covid-19), a inflação na Turquia foi de 15,2%; na Argentina, de 53,5%.
O ambiente se deteriorou no último ano, em especial na Turquia. Em paralelo à alta do dólar no país, a inflação em 12 meses saltou de 16,6% em maio de 2021 para 73,5% em maio de 2022.
"Em fevereiro de 2021, o dólar valia cerca de 7 liras turcas. Atualmente, está acima de 17 liras", diz o engenheiro Kenan Burak Can.
Nascido na Turquia, Burak se divide hoje entre Istambul e São Paulo, onde possui negócios na área de exportação. "A Turquia importa muitas coisas. Então, com a alta do dólar, todos os preços aumentaram."
O engenheiro afirma que, atualmente, as pessoas saem dos supermercados na Turquia "chocadas". "A carne sempre foi cara no meu país, então as pessoas costumam comer frango. Agora, muitas não podem nem comprar frango. A alternativa é feijão e lentilhas, mas mesmo esses produtos estão caros."
Alta de inflação veio para ficar
Para segurar a inflação, muitos países estão elevando os juros ou sinalizando que podem fazer isso nos próximos meses. Com juros mais altos, em tese, o consumo cai e os preços cedem.
Nos EUA, o Fed (Federal Reserve, o banco central americano) elevou os juros em 0,75 ponto porcentual em julho, para a faixa entre 2,25% e 2,50% ao ano. Também em julho, o BCE (Banco Central Europeu) subiu os juros de -0,5% para 0%. Foi o primeiro aumento em 11 anos.
A dúvida é se a alta de juros conduzirá a inflação dos países ricos a patamares próximos de zero, como verificado nas últimas décadas. Economistas ouvidos pelo UOL acreditam que a inflação vai ceder na Europa e nos EUA, mas não ficará tão baixa.
Nas últimas décadas, os países ricos compraram mercadorias —em especial vindas da China— a preços muito baixos, o que ajudou a manter a inflação sob controle. No cenário pós-pandemia, com a nova organização das cadeias globais de fornecimento, isso tende a mudar. "Está acontecendo uma reversão parcial da globalização", resume Mauro Schneider, economista da MCM Consultores. "Os países estão preocupados em garantir o fornecimento de insumos, e não necessariamente o menor custo."
A guerra entre Rússia e Ucrânia é outro fator para sustentar a inflação global. "É razoável supor que estejamos em um período de rearrumação geopolítica, que pode significar pressão sobre os preços de energia", diz Schneider. "Em um horizonte de cinco ou sete anos, podemos esperar por um ambiente com um pouco mais de inflação nas economias desenvolvidas."