Os casos de abuso sexual no esporte. E a dificuldade em denunciar
Foto: DivulgaçãoWednesday, 02 May 2018
Caso contra ex-treinador da seleção de ginástica artística masculina, acusado por mais de 40 atletas e ex-atletas, reforça ações de combate à prática e de abertura para novas denúncias.
Há dois anos, o Ministério Público de São Paulo recebeu a denúncia da família de um menino de 13 anos que acusava seu antigo treinador de ginástica artística de ter cometido abuso sexual contra ele. Antes que a investigação apresentasse resultados, 40 atletas e ex-atletas, procurados por uma jornalista, também resolveram falar.
“A partir do momento que eu vi, de fato, que foi alguém denunciar, pareceu que foi meio que um estalo, tipo: ‘Cara, por que que a gente não fez isso antes?’ Sabe?”, disse um deles à repórter Joanna de Assis, do Fantástico em reportagem publicada neste domingo (29).
O alvo das acusações é o ex-técnico da seleção brasileira de ginástica artística Fernando de Carvalho Lopes. Um dia após as acusações irem ao ar, o treinador foi afastado do clube particular onde trabalhou durante toda a sua carreira, o Mesc, em São Bernardo do Campo (SP).
Ao mesmo programa, Fernando de Carvalho Lopes negou todas as acusações e disse que os atletas e ex-atletas terão de provar os abusos. A psicóloga responsável pela equipe de ginástica artística, a direção do clube e o Comitê Olímpico Brasileiro disseram não terem recebido qualquer “reclamação” sobre o ex-treinador.
Apesar disso, a primeira denúncia levou o ex-treinador ser afastado da seleção masculina de ginástica artística a menos de mês do início da Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016. Na mesma época, embora não comente atualmente as denúncias, o clube Mesc transferiu Lopes do posto de treinador para uma função administrativa.
Entre as vítimas que agora acusam o ex-treinador está o ginasta Petrix Barbosa, campeão dos Jogos Pan-Americanos de 2011 por equipes. No seu caso, os abusos teriam começado quando ele ainda tinha 10 anos e se estenderam até ele deixar o Mesc, aos 13 anos, rumo ao clube da vizinha São Caetano. Lá, ficou sob o comando do treinador Marcos Goto, coordenador técnico da seleção. Ao Fantástico, diferentes vítimas disseram que Goto zombava das práticas de abuso de Lopes.
“Ele sabia de tudo. Todo mundo que foi treinar com ele falou para ele, e ele zoava as pessoas. Ele nunca tomou alguma posição. O Marcos Goto, ele zoava a gente. Tipo assim: ‘não consegue fazer barra aqui, vou te levar para a sauna, para ver se você consegue’”, disse um deles sobre o treinador do campeão olímpico Artur Zanetti.
Onda de denúncias
O caso brasileiro vem à tona quase três meses depois de o médico da equipe feminina de ginástica artística dos Estados Unidos, Larry Nassar, ser condenado a 360 anos de prisão pelo abuso sexual contra atletas e pornografia infatil.
O número de vítimas do médico chega a 265, sendo que cerca de 140 eram ginastas; algumas, campeãs olímpicas de renome, como Simone Biles e Gabby Douglas. Entre as vítimas, estavam de meninas de 15 anos a mulheres de 40 anos.
O caso que abalou a ginástica americana é um dos que se enquadram no chamado “efeito Weinstein”.
Após uma série de celebridades quebrarem o silêncio contra os abusos cometidos pelo produtor de Hollywood com a hashtag #MeToo (eu também), deu-se início a uma onda de denúncias sobre casos semelhantes em diversas outras áreas, como na indústria da música, no jornalismo, na política, na gastronomia, na literatura e no esporte, em diversos países.
O desafio da denúncia quando envolve meninos
Em 2015, repercutiu no Brasil uma campanha lançada pelo coletivo feminista Think Olga com a hashtag #PrimeiroAssédio, no qual mulheres eram convidadas a relatar a primeira vez em que haviam sofrido algum tipo de assédio sexual.
O objetivo era expor quão cedo meninas são obrigadas a lidar com esse tipo de violência. Em outubro daquele ano, dentre os mais de 3 mil tweets relacionados com a hashtag, a média da idade do primeiro assédio revelado pelas participantes foi de 9,7 anos.
Na mesma época, surgiram alguns relatos de vítimas masculinas de assédio, partindo da ideia de que mulheres sofrem mais abuso, mas também são as que mais denunciam. Casos de abuso sexual sofridos por meninos tendem a ser subnotificados.
À BBC Brasil, a psicóloga da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, Irene Pires, disse em 2015 que o “número de meninos abusados é bastante subnotificado, e isso se deve à nossa cultura”. “O caso de meninos assediados não vem à tona por conta do constrangimento em assumir que eles passaram por isso", afirmou.
Ainda de acordo com ela, fazer a denúncia de um caso de abuso é algo muito difícil para qualquer pessoa, mas para meninos há uma cultura que resulta em silêncio. “Os meninos chegam aqui muito mais constrangidos, apreensivos. Vivemos em uma cultura que ‘homem não chora’ e ‘sabe se defender sozinho’. Admitir uma fraqueza é difícil”, disse.
Assédio em campo
No Brasil, o principal esporte do país também é palco de casos de violência sexual. “Em todos os clubes de futebol no Brasil existe o assédio sexual (...) Não há um jogador que não saiba, não viu ou não tenha passado por uma experiência dessas”, disse em fevereiro de 2018 à revista Istoé o goleiro do Bragantino, Alexandre Montrimas, que também é autor do livro “Futebol: Sonho ou Ilusão?” (2017).
Um dos maiores celeiros de estrelas do futebol brasileiro, o Santos F.C., foi alvo recente de denúncias de abuso sexual contra meninos atletas. Em abril de 2018, o jogador Ruan Pétrick Aguiar protocolou acusação contra o coordenador das categorias de base do time do litoral paulista, Ricardo Marco Crivelli.
O caso teria acontecido em 2010, quando Ruan tinha apenas 11 anos. Na ocasião, o jogador teria tido o corpo acariciado e praticado sexo oral com Crivelli, na época observador técnico do clube. “O cara prometeu que me levaria pra jogar no Santos. Depois de algumas semanas, eu fui chamado para entrar no clube”, disse o jogador recentemente ao El País.
Para o goleiro Montrimas, para combater que esse tipo de coisa continue acontecendo no esporte, é preciso antes viabilizar o caminho para que a denúncia seja feita.
“Esse caso [das ginastas] dos Estados Unidos tem tudo para ensinar para gente. Ele ilustra bem o que acontece nos bastidores do esporte e porque não há denúncias”, disse ele à Istoé. “Aqui no Brasil aconteceram casos de garotos irem denunciar e serem mandados embora dos clubes (...) Precisamos mostrar que o caminho do assédio é um caminho errado e impedir que esses garotos sejam induzidos ao erro.”
Abrindo diálogo
Após o número de casos de vítimas do ex-treinador Fernando de Carvalho Lopes vir a público, o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho do Paraná, Gláucio Araújo de Oliveira, disse que o número é “muito alto” sabendo que há “muito receio, preconceito e retaliação” por parte de homens vítimas de abuso em denunciar O procurador-chefe é responsável por um projeto de prevenção a assédio moral e sexual no ambiente esportivo.
Para ele, embora hoje casos denunciados ainda sejam “tímidos”, esses números “só vão aumentar”.
A esperança de Oliveira se ampara no potencial sucesso do projeto que envolve a assinatura de termos de cooperação entre o Ministério Público do Trabalho e confederações de esportes diversos, visando gerar ações conjuntas concretas de combate ao assédio a atletas.
Em março de 2018, termos do tipo foram assinados com as confederações de ginástica e de ciclismo. Em abril, foi a vez da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, a qual envolve esportes como saltos ornamentais, pólo aquático, maratona aquática, nado sincronizado e natação.
Deste último, é conhecido o caso da nadadora medalhista Joanna Maranhão, que em 2008 relatou ter sido abusada ainda na infância por um treinador. Após a denúncia, o Congresso Nacional passou uma lei que ganhou seu nome e que altera as regras sobre prescrição do crime de pedofilia.
Os recentes acordos entre o MPT e confederações miram em ações em duas frentes: prevenção e repressão aos casos ocorridos, garantindo a privacidade do denunciante.
Entre as ações previstas estão a “criação de canais de comunicação eficazes e com claras regras de funcionamento”, a “apuração e sanção de atos de assédio” e a “inclusão de regras de conduta sobre assédio moral e sexual nas normas internas da confederação”.
De acordo com o procurador-chefe autor dos termos de cooperação, o objetivo é fechar acordos ainda com mais confederações. “Estamos abertos à assinatura de outros termos, com as demais confederações, ou até federações estaduais, se for o caso”, disse.