O futuro da Constituição
Foto: DivulgaçãoFriday, 05 October 2018
Especialistas e parlamentares opinam sobre a Carta Magna nos 30 anos de sua promulgação.
A Constituição Federal completa três décadas neste 5 de outubro. Em quase 11 mil dias de vigência, guiou sete presidentes da República, orientou 15 eleições e atravessou sete recessões econômicas.
Nesse período, foi emendada 99 vezes e regulamentada outras 263, além de debatida profusamente. Também baseou 4.305 decisões do Supremo Tribunal Federal, na forma de Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs e ADOs) e Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs).
Com esses números, pode parecer que a Constituição não tem mais para onde ir. Porém, desde o seu início, a Constituição de 1988 foi pensada como um trabalho em constante evolução. O presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), promulgou o documento chamando-o de “desbravador”.
— É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los – anunciou Ulysses.
Mais do que isso: ele disse que a Constituição admite e contém, em si, o espírito das suas futuras reformas, inclusive em previsões explícitas: a revisão constitucional realizada em 1994 foi uma determinação da própria Carta.
Dessa maneira, explicou Ulysses, a Constituição não pretendia ser o resumo da mudança do país naquele momento histórico, mas sim “a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”.
E como fazer a Constituição prosseguir rumo ao futuro? As avaliações sobre os rumos que a lei maior do país deve tomar são de várias naturezas. Para melhor balizar o Brasil no enfrentamento dos desafios vindouros, seria necessária uma completa revitalização dos fundamentos constitucionais? Ou mudanças pontuais bastariam?
O aniversário de 30 anos da Constituição acontece paralelamente a uma eleição presidencial de contornos delicados e repercussões ainda imprevisíveis para o destino do país. A intersecção entre esses dois eventos é que a ideia de um novo processo constituinte encontra eco nas duas candidaturas que lideram a corrida ao Planalto.
O general de exército Antônio Hamilton Mourão (PRTB), postulante a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PSL), que lidera as pesquisas de intenção de voto, comentou que uma nova Constituição poderia ser elaborada por um “conselho de notáveis” reunido pela Presidência da República. Seria algo semelhante à chamada “Comissão Afonso Arinos” (1985-1986), autora de um anteprojeto que acabou não sendo usado.
Já o segundo colocado na disputa, Fernando Haddad (PT), incluiu em seu programa de governo a proposta da convocação de uma nova Assembleia Constituinte. O colegiado seria formado a partir de uma eleição exclusiva, apartado do Congresso Nacional. Ao explicar a ideia, Haddad disse que a decisão final sobre a convocação seria do próprio Congresso, e que ao presidente caberia “criar as condições” para que isso ocorresse.
Quando promulgou a Constituição, em 1988, Ulysses Guimarães observou que o país não desejaria passar novamente pelo processo de formulação de uma Constituição.
— Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno. Nosso desejo é o da nação: que este Plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa.
Prevalece entre especialistas a noção de que o caminho para “afiar” a Constituição de fato não é a sua refundação integral. Mesmo quando falam em reformas profundas, a ideia nunca é partir de uma tela em branco, e sim, construir sobre o arcabouço já estabelecido.
Essa é a visão, por exemplo, de José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça que também foi deputado federal e advogado-geral da União, além de defensor da presidente Dilma Rousseff no processo de impeachment, em 2016. Ele foi entrevistado pela TV Senado para uma série sobre a Constituição, para a qual também foram ouvidas personalidades como os ex-ministros do Supremo Nelson Jobim e Ayres Britto, o ex-procurador-geral da República Roberto Gurgel e o relator-geral da Constituinte, Bernardo Cabral.
— Algumas questões talvez devam ser retrabalhadas e outras devem ser conservadas. Isso parte da perspectiva política de quem analisa o texto. Eu seria contra uma mudança da Constituição ou uma nova Constituinte neste momento. Eu seria favorável a que nós víssemos os pontos em que ela precisa de ajustes para que nós pudéssemos conservar esse esforço importante democrático de 1988 — aconselhou Cardoso.
Outro ex-ministro da Justiça, Nelson Jobim, afirma lamentar uma oportunidade perdida. Jobim – que foi deputado constituinte, além de ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) – diz que a revisão constitucional de 1994 “fracassou” por falta de interesse e envolvimento do governo federal na época. O presidente era Itamar Franco(1930-2011), que se empenhava na estabilização da economia e na governabilidade, tendo assumido o poder após o impeachment de Fernando Collor de Mello.
A falta de investimento na revisão significou perder uma brecha única na história constitucional: naquele momento era possível emendar o texto com um quórum mais simples do que o que se exige para aprovar emendas.
Passada essa oportunidade, Jobim diz que um caminho razoável de reforma seria identificar as questões mais conflituosas e transferi-las para o Ato das Disposição Constitucionais Transitórias (ADCT), um apêndice do texto principal. Essas matérias selecionadas passariam a contar, ainda, com a previsão de que leis ordinárias pudessem eventualmente alterá-las. Com isso, não haveria revogação imediata, mas seria aberto um caminho mais conveniente.
Jobim acrescenta, ainda, que é possível simplificar o processo deixando a varredura nas mãos de um corpo técnico. Depois, aos parlamentares caberia apenas o trabalho de articular politicamente a votação.
— As assessorias do Senado e da Câmara têm condições de fazer essa análise, têm quadros muito fortes. Podem fazer a identificação daquilo que criou conflitos.
Há quem argumente, também, que a prioridade neste momento não deve ser modificar a Constituição, mas sim completar a sua formação. Carlos Ayres Britto, ex-ministro do STF e ex-presidente da corte, afirma que o texto da Constituição ainda é “atualíssimo e sustentável”. Ele sustenta que o número de emendas promulgadas em 30 anos é excessivo e que a linha de ação mais sensata seria ponderar as possibilidades e desdobramentos do texto que existe.
— A Constituição tem sido mexida com uma fecundidade de hamster. É preciso uma pausa para reinterpretá-la, fundamentadamente e sem frenesi — ironizou o ex-ministro do Supremo.
Quanto a isso, Ayres Britto afirma estar otimista. Ele enxerga as instituições do país em uma fase madura de funcionamento e os agentes públicos desempenhando com “fidedignidade” as suas funções. Isso é a realização do potencial transformador da Constituição, afirma ele, e o Brasil deveria abrir espaço para que essa evolução institucional continue a se desenrolar.
— Estamos acertando o passo das nossas instituições, repaginando-nos nas dificuldades e projetando uma versão melhorada de nós mesmos.
Uma das instituições que mais se fortaleceram com a nova Constituição Federal foi o Ministério Público, que ganhou ferramentas de atuação inéditas. Roberto Gurgel chefiou o órgão, como procurador-geral da República, e avalia que o MP é um bom exemplo de que as previsões constitucionais precisam de tempo e tranquilidade para aflorar.
— Nosso avanço [no texto] foi tão grande que seria provável que boa parte dele não ganhasse vida, ficasse confinada à letra. Mas o MP teve a competência de dar concretude ao desenho constitucional. Nesses 30 anos, o que se fez foi dar cumprimento às normas e mostrar que a instituição que postulou essa ampliação de atribuições teve condições e capacidade de torna-las realidade.
Ainda há muitas previsões constitucionais, segundo Gurgel, sem implementação completa. Ele entende que o texto é atual e sinaliza a direção certa a seguir, portanto é preciso permitir que ele se cumpra.
— Primeiro, é essencial que esgotemos – se é que será possível – as previsões, para aí pensar em outras modificações.
Quando se fala em alterações na Constituição, o primeiro reflexo é pensar em ampliação do texto, com o acréscimo de dispositivos e assuntos. No entanto, uma rota possível é a oposta: a redução do escopo, por meio da desconstitucionalização de diversos temas. Essa alternativa é defendida por Nelson Jobim.
Jobim afirma que a abrangência temática da Constituição é excessiva e tirou do Poder Legislativo as condições de deliberar com autonomia.
— Como a Constituição ficou muito grande, ela reduziu o poder decisório do Parlamento. Toda decisão está submetida a uma análise do STF sobre se ela é compatível com a Constituição — avalia o ex-ministro do Supremo.
O resultado disso, para ele, é um processo político inconsistente e disfuncional, em que os atores não buscam mais construir pontes de diálogo, mas sim usar o tribunal constitucional para impor soluções fechadas:
— A política perdeu a capacidade de resolver as suas divergências. A maioria impõe à minoria, a minoria não se satisfaz e então recorre ao STF, trazendo-o para dentro do processo político. No início houve uma posição de contenção do STF, mas hoje os ministros estão gostando.
Além de acorrentar a política ao Judiciário, outra consequência do "preciosismo" da Constituição de 1988, para Nelson Jobim, é que a visão de mundo daquele instante do tempo se tornou a letra oficial e a palavra final no tocante a muitos assuntos.
Nas palavras de Ulysses Guimarães, a intenção era exatamente essa: imprimir no texto-guia da nação brasileira, para sempre, os anseios da redemocratização.
— Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio
No entanto, Jobim afirma que hoje, 30 anos depois, o que se tem é um entrave ao progresso e um obstáculo a novas formulações. Decisões adequadas ao momento histórico da Assembleia Constituinte hoje deixaram de sê-lo, e não podem ser adaptadas aos novos tempos com a agilidade necessária. A regra constitucional não pode ser muito [atrelada] à conjuntura porque, se muda a conjuntura, tem que mudar a regra. [Mas] se você tenta fazer um texto mexendo na conjuntura, acaba sendo inconstitucional.
O ex-ministro explica que o ideal seria o texto constitucional se ater a aspectos mais estruturais e perenes do Estado, como as relações federativas e os direitos fundamentais dos cidadãos. O restante deve ser tratado por leis ordinárias, que são mais permeáveis às mudanças conjunturais.
Carlos Ayres Britto, por sua vez, considera bastante positiva a arbitragem do Judiciário nos processos políticos. Ele e Jobim foram colegas no STF entre 2003, quando Britto chegou à corte, e 2006, quando Jobim a deixou.
Ayres Britto argumenta que a “adiposidade normativa” da Constituição é proveitosa, porque nela é possível encontrar as referências adequadas a toda sorte de dilemas em todos os campos normativos.
— Se a segurança jurídica máxima é o ideal de vida coletiva, no Brasil, por essa principiologia densa e copiosa, é possível encontrar resposta para os problemas mais relevantes.
O ex-ministro acrescenta, ainda, que a prática de recorrer ao STF quando há discordância é inerente à democracia. Ele acredita que o formato atual encoraja maior envolvimento dos cidadãos com a Constituição, o que aprimora o trabalho do tribunal.
— A influência da sociedade torna o STF proativo interpretativamente. Ele requinta e refina a sua análise do sistema jurídico porque sabe que será mais e mais cobrado.
Sobre a ancoragem temporal que a Constituição impôs ao incorporar todo tipo de assunto, Britto afirma não ser bem assim. Para ele, o exercício de interpretação constitucional já é suficiente para adaptar o texto à passagem do tempo, dispensando assim que isso fique dependente de mudanças literais.
— Princípios são, por definição, janelas para o futuro. Têm textura de linguagem aberta, o que possibilita ressignificações.
Para os especialistas que defendem mudanças na Constituição para o futuro, os temas que mais carecem de uma revisão são questões estruturais de grande alcance, e não pequenos detalhes.
Um tópico mencionado é a instituição de mandato fixo para os ministros do Supremo Tribunal Federal — atualmente os nomeados podem ficar até completarem 75 anos de idade. Para o ex-procurador-geral da República Roberto Gurgel, por exemplo, esse seria um “aprimoramento” para a instituição, mas há resistência.
— Esse foi um tema que chegou a ser suscitado na Constituinte, mas acabou não tendo um debate mais profundo. Não só não é consenso como há uma oposição ferrenha do Judiciário como um todo.
José Eduardo Cardozo também defende uma limitação temporal à atuação dos ministros. Para ele, a rotatividade seria capaz de manter a corte sempre “antenada” ao espírito do tempo, e não vinculada às idiossincrasias de seus membros: [Quem] dá a última palavra tem que estar muito conectado com a situação política do momento em que se faz a interpretação constitucional. Um juiz que fica muitos anos lá tem uma desconexão entre as suas crenças e aquilo que a sociedade pensa.
Cardozo defende, também, uma redefinição das competências do STF, voltando sua atuação exclusivamente para o controle constitucional. Outro ponto em que o ex-ministro da Justiça enxerga espaço para melhorias é o sistema político. Para ele, o modelo que o país tem é “anacrônico”, incentiva a corrupção e a ingovernabilidade e enfraquece os partidos.
Parte do que explica isso, segundo ele, é a forma como a Constituição foi elaborada. Apesar de ser o marco de um novo regime jurídico e institucional, ela não representou uma ruptura completa com o modelo anterior, acredita Cardozo.
— No fundo, é uma Constituição democrática que tem um sistema cujas bases estão na ditadura militar. Na verdade não tivemos uma Assembleia Nacional Constituinte, tivemos um Congresso investido de poderes constituintes — diz.
Uma reforma política de grande porte só virá com “pressão externa” da sociedade, ressalta o ex-ministro da Justiça.
Estruturas da ordem econômica do Estado também são passíveis de alteração, argumenta o ex-ministro Nelson Jobim. Na linha da “desconstitucionalização”, ele defende que assuntos como o sistema tributário e a previdência social deixem a Constituição e passem a ser tratados apenas na legislação ordinária. Dada a sua complexidade e repercussão, eles devem estar mais acessíveis para que possam ser ajustados mais facilmente, aponta Jobim.